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A artista afro-brasileira Rosana Paulino está suturando o passado ao presente | Brasil

Tiago Rogero in Rio de Janeiro

EUm 1865, o fotógrafo francês Augusto Stahl fez imagens de uma mulher negra nua no Rio de Janeiro. Eles mostram a mulher não identificada – Stahl não se preocupou em registrar seu nome – de frente para a câmera, de perfil e por trás, em uma sequência que inevitavelmente lembra fotos policiais.

Stahl trabalhava para o biólogo suíço-americano Louis Agassiz, professor de história natural na Universidade de Harvard, que havia encomendado fotos de negros “puros” para apoiar suas teorias racistas, como a ideia de que a miscigenação levaria a seres humanos inferiores.

Assentamento de Rosana Paulino (2013), em exposição no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba) em Fotografia: Felipe Bozzani

“As imagens me afetaram profundamente, mas eu não sabia o que fazer com elas”, disse o artista brasileiro Rosana Paulino57 anos, que se lembra de tê-los encontrado pela primeira vez enquanto lia um livro em 2011. “Tirei uma foto da página e coloquei na gaveta”.

Cerca de um ano e meio depois, ela o transformou em uma obra de arte, Assentamento, que leva o nome dos altares das religiões afro-brasileiras. As fotografias, impressas em tamanho real em tecido, são adornadas com bordados de coração, feto e raízes. Cada um é então cortado em quatro partes e “suturado” – com algum desalinhamento, para representar as cicatrizes psíquicas e físicas suportadas por gerações de negros brasileiros. Cada imagem é ladeada por dois montes de braços de argila de papel empilhados como lenha para simbolizar a forma como os corpos negros foram consumidos como combustível para o crescimento econômico do Brasil.

Este ano, o Assentamento foi uma das principais atrações do primeira exposição individual de uma artista negra realizada no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba)que foi visitado por 72 mil pessoas entre março e junho.

“O que me impressionou foi a força daquela mulher”, disse Paulino. “Se estas fotografias foram tiradas para mostrar uma falsa inferioridade daquelas pessoas, quero demonstrar que, apesar de terem sido raptadas e atiradas para o porão de um navio, essas pessoas sobreviveram e ainda assim conseguiram construir uma nação.”

Parede da memória (1994/2015). Fotografia: Isabella Matheus

Nos últimos anos, Paulino – uma das artistas visuais mais proeminentes do Brasil – expôs seu trabalho em museus de todo o mundo. Alemanha, os EUA e Itália. Em novembro, ela inaugurará um mural de 9 metros de altura no High Line de Nova York, e a Tate Modern confirmou que está adquirindo uma de suas peças.

Na quinta-feira, Paulino receberá o prêmio inaugural pela liberdade artística concedido pelo Museu Munch em Oslo. Ao anunciar sua decisão, o júri declarou: “Rosana Paulino contribuiu para algumas das conversas mais importantes sobre arte, história e sociedade no Brasil e além”, acrescentando que a artista “tem sido uma voz de liderança no feminismo negro, com uma posição firme compromisso com a luta das comunidades afro-brasileiras e a luta contínua contra o racismo”.

As técnicas que utilizou ao longo de seus 30 anos de carreira incluem bordado, colagem, pintura e escultura. Mas o tema central é muitas vezes o mesmo: “Quero trazer à mesa a questão do que significa ser uma mulher negra num país racista como o Brasil”, disse ela.

É precisamente isso que torna a obra de Paulino “universal”, segundo Andrea Giunta, curadora da sua exposição no Malba.

“A escravidão não era um problema apenas para o Brasil, mas para o Américas”, disse Giunta, professor de artes da Universidade de Buenos Aires. “A Europa também está profundamente envolvida nas reflexões de Paulino, que são universais no sentido geográfico e em termos de justiça social.”

Para Paulino, a dor causada pela diáspora de africanos “está presente na América Latina, nos EUA e aqui na Europa com os imigrantes”, disse ela a partir de um hotel em Oslo, à espera da cerimónia de entrega de prémios. “E isso está fazendo com que meu trabalho alcance públicos que eu nunca esperei.”

Nascida e criada em um bairro popular de São Paulo, Paulino descobriu a “arte negra” pela primeira vez na adolescência, em um desfile de escolas de samba durante o Carnaval. “O tema daquele desfile da Mocidade Alegre foi sobre os artistas brasileiros, os poucos reconhecidos na época”, disse ela.

Com um talento para o desenho desde a infância, ela decidiu se formar em artes na universidade.

Peixe, Da série mangue (2023). Fotografia: Bruno Leão

Em 2011, Paulino se tornou a primeira negra brasileira a obter doutorado em artes visuais. “Ter uma validação acadêmica foi uma estratégia que desenvolvi para que minha voz fosse ouvida… A arte brasileira sempre foi muito branca e elitista, o que, com poucas exceções, invisibilizou o trabalho dos artistas negros”, disse ela.

Nos últimos anos, a representatividade melhorou, mas ela ressalta que ninguém abriu portas por “gentileza”: “As instituições brasileiras foram obrigadas a agir porque viviam constrangimentos internacionais, com um mercado inteiramente branco e eurocêntrico que ignorava o seu próprio país”, ela disse.

Para a curadora brasileira Janaína Damaceno, “uma das grandes qualidades do trabalho de Paulino é que ela é uma pesquisadora incrível”.

A artista pretende usar a maior parte do prêmio em dinheiro do Prêmio Munch – (£ 20 mil) – para fundar o Instituto Rosana Paulino, que será construído em um bairro popular de São Paulo. O instituto servirá como biblioteca de imagens e centro de estudos que documentará as representações dos negros.

Este ano, Paulino deixará de lecionar como professora de artes e se dedicará inteiramente à sua arte. “Quero passar um tempo no meu estúdio, produzindo, pesquisando e experimentando novos materiais ou novas formas de utilização de materiais.

“Quero poder não ter que ser político o tempo todo, não planejar tantas estratégias o tempo todo… Não vemos esse mesmo tipo de pressão sobre os artistas brancos”, disse ela.





Leia Mais: The Guardian

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