Gustavo Zeitel
[RESUMO] Livros póstumos dos poetas Antonio Cicero e Armando Freitas Filho, recém-lançados, sintetizam estilo e pensamento dos dois autores, bastante diferentes entre si, mas ambos pilares da poesia brasileira contemporânea.
Morto um poeta, parece difícil explicitar como sua ausência impactaria a coletividade no século 21. Mesmo os teóricos já decidiram que um poema vale por si: entre o primeiro e o último verso, forma-se um acontecimento sem finalidade. Seguindo a lógica, não precisaríamos de poesia para viver, seria lícito afirmar.
Contudo, as mortes de Antonio Cicero, aos 79 anos, e de Armando Freitas Filho, aos 84, que ocorreram no intervalo de um mês, entre setembro e outubro, provam o contrário e ainda permanecem, entre seus leitores, como um luto indecifrável, cuja dimensão se recusa a ser mensurada por meios objetivos.
A leitura de “Respiro”, último livro de Armando, e de “O Eterno Agora”, coletânea de ensaios escrita por Cicero, que chegam postumamente às livrarias, representa o enfrentamento ao vazio, originado pela interrupção abrupta de duas obras norteadoras do ofício poético em nosso país. Tão diferentes entre si, Armando e Cicero tornaram-se pilares da poesia contemporânea brasileira, estabelecendo projetos singulares, em diálogo com a tradição modernista.
No caso de Cicero, “O Eterno Agora” ressalta seu trabalho como filósofo, que ele mesmo tentava manter apartado da escrita literária. Num primeiro momento, os textos foram apresentados em conferências, organizadas pelo jornalista e também filósofo Adauto Novaes. Em especial, Cicero dedica três ensaios a uma investigação sobre a natureza da poesia, tema que perseguiu durante toda a vida.
Em “A Poesia Entre o Silêncio e a Prosa do Mundo”, ele discorre sobre o conceito de linguagem do entendimento, criado pelo filósofo alemão Hegel, para opor dois usos distintos da língua. A linguagem do entendimento está alicerçada na razão humana e tem a finalidade específica de diferenciar as coisas, dado que, nas palavras de Hegel, “a atividade de separação é a força e o trabalho do nosso entendimento”.
O mundo, afinal, apresenta-se ao ser humano como uma grande indistinção a ser organizada pela racionalidade. Ocorre que, na poesia, prevalece outro objetivo. Embora o poeta não possa recusar a faculdade do entendimento, sua função é subverter a linguagem utilitária, promovendo um deslocamento entre as palavras e os respectivos significados dicionarizados.
Assim, o autor deve provocar uma nova realidade semântica, em que a apreensão estética se sobreponha ao utilitarismo, numa desorganização da linguagem. Não à toa, Hegel pensa um poema como um “organismo intrinsecamente infinito”, que se desdobra em múltiplos sentidos.
Tampouco a revelação da verdade deve orientar a escrita poética, como Cicero observa em “Homero e a Essência da Poesia”. É sabido que, na Antiguidade Clássica, os aedos —os poetas cantores da Grécia Antiga— invocavam as musas para rememorar os acontecimentos e entoá-los. Para o senso comum, o poema épico seria a reconstituição da história de um povo, e o aedo, o guardião de tal passado.
Traçando uma genealogia das musas, Cicero relativiza a leitura tradicional ao sugerir que a relação entre a memória e a imaginação é inextricável. Prevaleceria, em última instância, a liberdade do fazer poético e o sentido de invenção artística.
“A beleza do poema épico —sua qualidade estética— prova a origem divina do poema, e a origem divina do poema confere relativa liberdade —autonomia— à poesia, logo ao poeta, liberdade para cantar […] sem nenhuma consideração para com a verdade, a ética ou a utilidade”, escreve.
O autor também analisa a criação literária, em “Poesia e Preguiça”. Rejeitado pela sociedade de livre mercado, o ócio aparece como um requisito à escrita de poemas, tanto mais agora, quando o tempo livre tem se comprimido de tal forma, que perturba a atenção à leitura e ao estudo extensivo.
Dialogando com o filósofo Henri Bergson, Cicero caracteriza a preguiça do poeta como a recusa do tempo espacializado, o tempo do trabalho convencional. Não se trata, porém, de uma recusa do trabalho. O autor deve suspender o tempo do relógio, adentrando um vazio para ter a “liberação de passado, de futuro e da consciência presente”. Só assim, em dias limpos, seu ofício pode ser exercitado. Afinal, a escrita de um poema tem duração vertiginosa, podendo levar dias ou anos.
Se a poesia se define pela subversão da linguagem prática para o estabelecimento de uma dimensão estética, a morte de um poeta significa perder a liberdade de imaginar uma realidade outra, que não o presente cotidiano. Por isso, a interrupção da fala de um poeta limita as possibilidades de ver o mundo.
Como dizia o francês Jacques Roubaud, lemos um poema com a voz aural, a voz “para dentro”: fazemos das palavras do outro as nossas, unimos a nossa voz à do autor, numa imersão ativa no texto. A morte de um poeta nos silencia. E todo silenciamento é uma violência.
Em “O Eterno Agora”, nada escapa ao pensamento do autor, que exercita o seu conhecido estilo lógico de escrita e se mostra atento ao avanço da biotecnologia (“O Ser Humano e o Pós-Humano”), ao conceito de modernidade (“A Sedução Relativa”) e ao crescente conservadorismo no mundo (“Os Diretos Humanos vs. O Neofascismo”).
Cicero encontrou, na mitologia grega, seu referencial civilizatório, embora no livro transpareça, sobretudo, um certo iluminismo, a mesma postura libertária e racional que caracterizou sua vida e obra até a decisão de fazer eutanásia, na Suíça, quando já padecia dos sintomas do Alzheimer.
É bem verdade que Cicero pode ser visto como um autor de múltiplas faces. Só o letrista tem duas. Nos anos 1980, com sua irmã, a cantora Marina Lima, adotou uma dicção direta, correspondente à música pop. Na década seguinte, seu trabalho se redimensionaria, nas parcerias com Adriana Calcanhotto, quando as diferenças entre poema e letra de música foram anuladas.
Há ainda o autor dos livros “Guardar” (1996), “A Cidade e os Livros” (2002) e “Porventura” (2012). Neles, a dicção clássica impera, avalizada pelo domínio das formas fixas. Não raro, os temas mitológicos fundem-se à paisagem carioca, aproximando a discussão existencial ao leitor.
Já o ensaísta mostrou interesse na obra de seus contemporâneos, inclusive na de Armando Freitas Filho. Embora não fossem íntimos, os poetas sempre se encontravam em eventos literários e mantiveram uma relação cordial. Há sete anos, figurava, na coletânea “A Poesia e a Crítica”, o ensaio “A Poesia de Armando Freitas Filho e a Apreensão Trágica do Mundo”.
Nele, Cicero compara as tragédias de Shakespeare à temática dominante na obra de Armando, cujo sujeito lírico se assemelha ao herói trágico, que “afirma verdades profundas sobre o caráter patético, ridículo, terrível e/ou absurdo da própria condição humana”.
Tal paradigma está presente no recém-lançado “Respiro”, último livro do autor, morto por uma conjunção de problemas de saúde. Enquanto “O Eterno Agora” dimensiona as perdas, “Respiro” investiga a morte. De início, leiamos o poema “Imóvel”:
Entre vida e morte nada.
Tédio. Não atravesso o mar
Nem o rio.
Nem ninguém me leva
para nenhuma aventura
de viagem ao limite do horizonte.
Também o barco
e a sua vela sem vento
não se livra da âncora.
O substantivo inaugural do segundo verso, “tédio”, seguido por ponto final, anula a antítese anterior formada por “vida” e “morte”. No que se restringe à temática, o sentimento de tédio se mostrará soberano nos versos seguintes.
Adiante, o marasmo concretiza-se na imagem da vela sem vento, e o poema finda com a tragicidade figurada pela âncora. Tal é o peso da existência, feito barco que não singra, parado contra o mar. Não aprendemos a morrer, é certo, mas a imobilidade é uma forma de preparação para o desaparecimento.
Muito além da condição física do corpo, subsiste, nos poemas de “Respiro”, a sensação de que as coisas passam, enquanto permanecemos no mesmo lugar, reféns da arbitrariedade do tempo. Em geral, observa-se que a imobilidade torna-se vetor criativo da obra literária, na medida em que permite ao autor a recusa do cotidiano monocórdico, escrutinando-a ou exteriorizando seu processo criativo a outras imagens.
Inerte, o poeta aprofunda temas recorrentes em seus livros: a escrita de um poema, a paisagem do Rio de Janeiro e a própria casa, esmiuçada em “Móvel Imóvel”, obra em que até a “placa de borracha preta/ que impedia a máquina de escrever/ Olivetti Letter 22 deslizar no tampo” é investigada, como se, prevendo a tragicidade da existência, o eu lírico se apegasse a rastros de vida.
Sob o aspecto formal, é notável a escrita de poemas de uma estrofe, com um só período e sucessivos “enjambementes” —grosso modo, a continuação de um verso no outro, advinda de uma cesura sintática. E, ao contrário de Cicero, Armando aventurou-se, com maior frequência, pelo verso livre.
Em obras recentes, também passou a construir poemas a partir de referências culturais, numa atitude crítica. Escrevia o que se apresentava ao cotidiano: uma tela, um filme, outro poema. Embora diluída, a tendência reaparece em “Vencer e Sofrer”.
Borges foi perdendo
a visão. Os olhos
foram se fechando
decorados e lidos
com ajuda e amor.
Nelson Freire
de repente caiu
para sempre e resolveu
não ouvir mais
a sua perfeição
no teclado imóvel.
Em primeiro lugar, o paralelo criado entre o escritor argentino Jorge Luis Borges e do pianista brasileiro Nelson Freire denota a exteriorização da apreensão trágica do eu lírico, identificada pelo filósofo, projetada em dois personagens. Tal paralelo é construído por duas estrofes, uma para cada artista, mas com um número desigual da versos —a primeira com cinco e a segunda com seis.
Ressalta-se o “enjambement” entre os versos iniciais. O eu lírico dramatiza a cegueira de Borges ao deslocar o complemento do verbo (“a visão”) até o segundo verso. Do mesmo modo, a ênfase na ação prolongada em “perdendo” e “foram se fechando” enfatiza a dolorosa cegueira do autor de “Ficções”.
Mas a queda, que provocou a depressão de Nelson Freire, não comporta gerundismos, apenas o pretérito perfeito (“de repente caiu”). A imagem poética, no entanto, consiste na subversão temporal de um evento episódico numa queda “para sempre”. Por fim, há uma menção à imobilidade: o piano vazio concretiza a união do pensamento trágico à atitude crítica. Em suma “Vencer e Sofrer” é um poema exemplar do autor, na medida em que conjuga esmero construtivo à riqueza inventiva.
Ninguém deu uma contribuição tão efetiva à poesia contemporânea quanto Armando Freitas Filho, um homem gago, franzino e cheio de medos e manias. As comidas não podiam ser coloridas, e os jogos do Fluminense tinham dupla narração: a do locutor da TV e a da onipresente Cristina Barreto, sua mulher.
Ela repassava os lances para o poeta, que concebia uma partida de futebol como uma tragédia em potencial. Hipocondríaco, já apresentava uma personalidade grave, que não raro redundava em momentos cômicos. O próprio “Respiro” é dedicado ao “Drama”, assim, com “D” maiúsculo.
Armando ressaltava a sua escrita trifásica: primeiro à mão, depois na máquina de escrever e só então no computador. Nos últimos anos, sua casa na Urca, na zona sul carioca, tornou-se o ponto de encontro de jovens poetas, a maioria mulheres, que renovariam a cena, com seus 30 anos. Laura Liuzzi, Bruna Beber e Alice Sant’Anna foram algumas das escritoras que se reuniam naquela casa para tomar algumas lições.
Na juventude, Armando integrou a Instauração Práxis, movimento em reação à poesia concreta. Melhor amigo de Ana Cristina Cesar, esteve, nos anos 1970, à margem da geração marginal, optando por dialogar com João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, inclusive tête-à-tête. No futuro, seria o guardião do acervo de sua melhor amiga.
Em 1986, teve o livro “3×4” premiado com o Jabuti. Catorze anos depois, ganharia o Alphonsus de Guimarães, com “Fio Terra”. Ao lançar “Arremate”, na ocasião do seu aniversário de 80 anos, garantiu ser aquele o seu último livro, numa tentativa vã de domesticar a qualidade trágica do destino.
Com a publicação de “Respiro”, a morte surge em desprendimento de tudo, como se só restassem as imagens dos objetos, passando em carrossel, aptas a serem raptadas pelo poeta. É o que diz “Contar”: “Todos os dias são contados. Só não sei ao certo/ a quanto contam, a quantas manhãs/ e noites faltam ainda no céu.”
Armando veria manhãs, tardes e noites se embaralharem na passagem do tempo, refletida na natureza, onde tudo nasce, cresce e morre, numa indiferença orgânica e essencial a existência humana. Mesmo sem o poeta, os dias recomeçariam “Zero Bala”, com a força vital da poesia, “organismo intrinsecamente infinito”. “A vida tem um vigor/ que o corpo não comporta/ por mais que se prepare./ No mesmo passo, a natureza caminha para o zero/ como o seu fruto principal.”