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Daniela Falcão: Fiz o melhor que podia naquele contexto – 04/01/2025 – Mônica Bergamo

Teté Ribeiro

Daniela Falcão recebe a reportagem— eu e o fotógrafo Zanone Fraissat, autor do retrato que ilustra essa matéria— em sua “casa paulista”, um apartamento amplo e lindo nos Jardins, em São Paulo, decorado com o estilo high-low que parece nortear a nova vida da jornalista baiana. Paredes abertas, espaços amplos, móveis grandes e confortáveis, escolhidos a dedo para deixar a casa bonita, mas, fundamentalmente, gostosa.

Entre suas diversas coleções —objetos de viagens, elefantes, imagens sagradas de diversas religiões, capas antigas da revista Vogue emolduradas e fotos de ícones da moda como Iris Apfel, a empresária e designer de interiores que morreu aos 102 anos em março de 2024—, daria quase para adivinhar a trajetória profissional e pessoal de Daniela.

E as duas coisas sempre se misturaram na vida dela. Daniela Falcão é uma pessoa intensa, que fala o que pensa e para ser ouvida, para quem a discrição não é um valor supremo. Não estamos aqui no reino do “quiet luxury”, não tem nenhum tom de bege nessa história. Ela erra e acerta de coração aberto.

Na tarde combinada para o nosso encontro, no último mês do ano passado, foi anunciado que o designer e bad boy britânico (aos 64 anos, mas, enfim) John Galliano havia anunciado sua saída da Maison Margiela, depois de 10 anos à frente da grife francesa de luxo talvez menos convencional do mercado.

Cheguei achando que ia contar essa novidade, e, pela reação, já ia entender como anda o relacionamento da jornalista com o mundo da alta costura. Será que ela queria distância desses nomes todos? Teria criado aquele arrepio de um mundo que te consome e, depois, rejeita? Será que ia cortar o assunto pela raiz e deixar claro que estava ali para falar de sua vida presente?

Tudo errado. Não só ela já sabia do fato como tinha ido muito além e até criado sua própria teoria a respeito do futuro do estilista. “Tenho a impressão de que o Galiano tem alguma coisa já combinada, e não deve ser uma marca dele”, disse. “Tem duas casas com os lugares vagos, Chanel e Fendi. E não acho que ele vá para a Chanel. Minha aposta é a Fendi.”

Dois dias depois da nossa conversa, o estilista franco-belga Matthieu Blazy foi anunciado como o próximo diretor criativo da Chanel, cargo que assume em outubro de 2025. Até o fechamento desta edição, nem o futuro de John Galiano nem o nome do próximo diretor criativo da Fendi, grife italiana que hoje faz parte do conglomerado LVMH, estavam definidos.

Mas o assunto serviu para Daniela começar a falar sobre o mundo da moda, o que ela fez sem amarras, sem censura. “Comecei minha carreira na Folha, trabalhando em Cotidiano, cobrindo enchente, chacina, essas matérias barra-pesada do dia a dia”, conta. “Como eu sou baiana, tenho sotaque, conseguia falar de igual para igual com as vítimas, e me destaquei.”

“Eu era uma repórter muito ambiciosa, fiz umas pautas que hoje em dia seriam impensáveis. Em um plantão de Carnaval, minha editora na época pediu para eu ir atrás de uma personagem para dar um depoimento do tipo ‘dei e me dei bem’”, conta. “Eu fui e fiz. Eu entendo como essas coisas acontecem, claro que você não abre totalmente o jogo para o entrevistado, vende uma coisa mais romântica, mas aí escreve o que o editor pediu.”

Depois, ainda nos anos 1990, virou correspondente-bolsista em Nova York. Lá, entrou em contato com um universo mais de celebridades e de comportamento, além das reportagens de economia e política exigidas de quem ganha essa posição.

Doeu muito [a denúncia de assédio moral], também fiquei sem dormir, me remoendo, mas confesso que não foi tão ruim quanto a acusação de racismo, porque a essa altura eu já estava medicada e pensando em qual seriam meus próximos passos

Depois de uma passagem pela revista de domingo do extinto jornal carioca Jornal do Brasil, Daniela virou editora-chefe da revista Trip. “Eu não entendia nada de surfe, e esse é um mundo muito machista”, afirma. “Fui a primeira mulher a chefiar a redação da Trip. Mas essa é a natureza do trabalho de jornalista, né? Você vai para um lugar desconhecido aprender tudo sobre aquilo e depois conta para os leitores.”

Em pouco tempo Daniela virou diretora de duas revistas, a Trip e a TPM, uma publicação voltada para o público feminino. Então foi convidada para chefiar a Vogue brasileira, que já existia mas era uma revista feita por gente da elite para gente da elite. E a ideia era transformar a Vogue em um produto jornalístico, com serviço, preço das roupas mostradas e não só o fabuloso universo deslumbrante dos editoriais de moda com peças que custam uma fábula vestidas por meninas que ainda não têm nem carteira de motorista.

A chegada à Vogue foi tudo menos tranquila. “Um dos editores esperava os momentos em que estávamos só os dois na redação, ligava para um amigo e ficava falando mal de mim em francês, achando que eu não entendia. Dizia coisas horríveis sobre minha aparência, o fato de eu ser baiana, de não conhecer fotógrafos nem estilistas. Um dia eu fiquei tão possessa que peguei um telefone, nem disquei nem nada mas soltei todo o meu francês. O cara ficou vermelho, depois branco e a partir disso começou a me tratar diferente. Foi muita maldade.”

No primeiro mês de trabalho, Daniela engordou oito quilos. “Sabe aquela coisa de ficar trabalhando obstinadamente e não ter tempo de se cuidar?”, diz ela, que adotou um uniforme de trabalho, calça risca de giz e camisa polo Lacoste. “Aos poucos eu fui aprendendo que me apresentar de um jeito mais bem cuidado é uma gentileza que a gente faz, é uma linguagem que a gente aprende. E o estilo vai mudando conforme a vida, mas a gente tem que saber como está se apresentando ao mundo.”

“Lembra da cena do filme ‘O Diabo Veste Prada’, em que a Meryl Streep explica para a personagem da Anne Hathaway que o suéter azul que ela está vestindo é o resultado do trabalho de uma indústria inteira de moda que emprega milhões de pessoas no mundo todo, mas que ela acha que está acima de tudo isso porque ela ‘não liga para as aparências’? Aquele é o melhor resumo da importância da moda, esse filme é uma Bíblia para quem passa pela vida sem dar o devido valor às aparências.”

Aos poucos, Daniela foi transformando a Vogue brasileira em um caso de sucesso, aumentando a tiragem da revista, melhorando o nível dos textos, das pautas e dos colaboradores. Começou a frequentar as semanas de moda da Europa e dos Estados Unidos e a trabalhar no fuso horário em que estivesse.

“Eu ia nos desfiles, saía pra jantar, ia pras festas, voltava pro hotel às duas da manhã e ia ver página por página da edição. Nada saía sem eu dar o ok final”, conta.

Na redação, no Brasil, esse ritmo de trabalho da chefa foi cansando a equipe. Em 2017, Daniela foi promovida mais uma vez, e virou CEO da joint venture das editoras Globo, brasileira, e Condé Nast, americana, criadora da Vogue e de outros títulos de sucesso como Glamour e a masculina GQ.

Agora ela era mais executiva que jornalista, mais poderosa do que nunca, com salário melhor e muito a perder. Então, veio o primeiro baque. No começo de 2019, uma das principais colaboradoras da Vogue, Donata Meirelles, celebrou seus 50 anos com uma festa em Salvador, cidade de seu marido, o publicitário Nizan Guanaes. Uma foto dela, loira, vestida de rosa e muito ornamentada, sentada em uma cadeira de palha de encosto alto e rodeada de mulheres negras vestidas de branco, viralizou e foi muito criticada.

A imagem trazia à mente tanto a real desigualdade racial brasileira quanto levava à equivocada conclusão de que a aniversariante estaria sentada em uma cadeira de babalorixá, o líder das religiões de matriz africana, tanto da umbanda quanto do candomblé, o mediador entre os orixás e os seres humanos, uma figura de grande autoridade.

Sou de uma geração em que dar a vida para o trabalho é uma coisa louvável e combina com meu jeito de ser. E fui chefiar uma equipe de gente da geração Z, que são como aposentados precoces, eles já chegam meio de saco cheio e não querem plantar e depois colher, querem tudo ao mesmo tempo. Eles têm razão de ser assim, é uma mudança de consciência

Os pedidos de desculpas da aniversariante feito em redes sociais não fizeram nada para acalmar os ânimos, e a acusação de apropriação cultural e apologia do racismo estrutural do Brasil rodou o mundo. A Vogue Brasil foi acusada de ser uma redação racista. Donata pediu demissão do cargo de editora de estilo nos dias seguintes, e Daniela se viu diante de uma onda de ódio inimaginável.

“Doeu muito, doeu mais que tudo ter me visto no meio dessa polêmica. Tive que ser medicada, fiquei várias noites sem dormir, foi meu pior pesadelo”, afirma. Mas ela seguiu em frente, disposta a não se perder por causa de um erro de interpretação, de um boato maldoso que saiu de controle. No ano seguinte começou a pandemia, todo mundo em home office, e Daniela decidiu se isolar em Fortaleza, onde morava sua namorada na época.

Prestes a completar 50 anos, viu a reconexão com o Nordeste acender nela a vontade de pensar num futuro em que pudesse se dividir entre São Paulo e sua terra natal. E aí veio o segundo baque, na forma de uma reportagem publicada pelo site americano Buzzfeed. Na matéria, Daniela é alvo de 27 denúncias de assédio moral, humilhações no local de trabalho, jornadas de 24 horas seguidas em feriados, finais de semana etc.

“Doeu muito, também fiquei sem dormir, me remoendo, mas confesso que não foi tão ruim quanto a acusação de racismo, porque a essa altura eu já estava medicada e pensando em qual seriam meus próximos passos”, afirma.

“Fora isso, eu entendo o que aconteceu. Foi como uma rachadura no sistema. Eu sou de uma geração em que dar a vida para o trabalho é uma coisa louvável e combina com meu jeito de ser. E fui chefiar uma equipe de gente da geração Z, que são como aposentados precoces, eles já chegam meio de saco cheio e não querem plantar e depois colher, querem tudo ao mesmo tempo. Eles têm razão de ser assim, é uma mudança de consciência.”

E, para uma matéria de denúncia dar certo, tem que ter um vilão na história. “Na reportagem do Buzzfeed [que saiu do ar no Brasil em 2023, o texto agora só está disponível em inglês, no site americano], 80% do que está escrito está certo. Tem distorções, coisas que ocorreram com outras pessoas e acabaram na minha conta, mas aquilo tudo acontecia mesmo, e tinha que parar”, diz Daniela.

“Eu faria tudo diferente hoje em dia, lógico. Mas, dentro daquele contexto, fiz o melhor que podia. Minha trajetória é cheia de altos e baixos, e fui vítima de um tipo de jornalismo que fiz durante anos, por isso guardo zero rancor [talvez 5%, vai]”, afirma ela, dias depois, por WhatsApp.

Entre mortos e feridos, o lugar que a moda conquistou no coração e na vida de Daniela Falcão segue intacto, e é o norte de sua primeira empreitada como empresária, a plataforma Nordestesse, em que ela reúne peças de moda e design autênticos nordestinos e oferece para o mercado de luxo de São Paulo, Rio, e, principalmente, Brasília.

Com sua irmã como sócia, Daniela faz uma curadoria de grifes que usam trabalhos manuais e, se preciso, ajuda a fazer com que a apresentação das peças tenham o capricho e a delicadeza necessários para competir com as grifes mais poderosas do mundo, essas que trocam de diretor criativo como quem troca de jogador de futebol, em lances caríssimos.

Só não chame o que ela vende de artesanato, por favor. “É arte popular”, esclarece.



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