Paulo Santos Lima
Nenhum outro cineasta além de David Lynch encontrou e retrabalhou aquele que seria o grande gêiser do imaginário americano do século 20 —os anos 1950. Essencialmente, aquela foi a década que portou tudo de pior e melhor da história dos Estados Unidos.
A bomba H, o expansionismo global, a caça às bruxas do macarthismo e o alienante sonho americano impondo o atraso espiritual do país. Em contrapartida, a iluminada onda dos rebeldes sem causa questionando as instituições, a cultura beatnik, o cinema mais moderno de diretores como Nicholas Ray, a arte de Jackson Pollock, o cool jazz de Miles Davis e o rock’n’roll de Little Richard compondo, juntos, uma frente que germinaria a contracultura nos anos 1960.
Esse “american dream” que, nos anos 1980, ecoava saudosista na era Reagan seria revirado do avesso por David Lynch a partir de “Veludo Azul”, de 1986. A fábula do mundo perfeito encapsulado numa pequena cidade na América profunda, com suas ruas, casas e jardins floridos, era desmontada por uma orelha decepada tomada por formigas.
David Lynch fará, desde sempre, uma releitura crítica e anárquica desses itens lapidares do imaginário cultural americano. Sua trajetória será o encontro com a Hollywood profunda —a da catarse e espetáculo, e também do pesadelo, da fantasmagoria dos astros e estrelas se transformando em metafísica tal as projeções na tela de cinema.
Sua obra foi avançando para um surrealismo que tricotaria numa mesma tapeçaria os filmes policiais, os fantásticos, os de terror e o melodrama. “Coração Selvagem”, de 1990, tem algo de “O Mágico de Oz” junto com Nicolas Cage fazendo o rebelde sem causa com uma jaqueta de pele de cobra tal a de Marlon Brando em “Vidas em Fuga”, de 1960. A cinefilia e discurso cinematográfico gerando uma nova percepção.
A temporada 1990 da lendária “Twin Peaks” seria a primeira das obras-primas que Lynch faria. A transgressão era tão evidente quanto sedutora, pois Lynch faria desse drama de mistério típico dos produtos televisivos uma obra experimental onde tempo e espaço têm uma lógica própria.
“Estrada Perdida”, de 1997, era uma imersão mais incisiva no tema Hollywood. Lynch dialoga com “A Morte Num Beijo”, de 1955, filme noir de Robert Aldrich que conversava com o cinema físico e também com a ficção científica e o apocalipse nuclear.
E um filme pós-moderno por excelência, e também analítico. A narrativa começava bem anos 1990, cheia de afetações visuais e lógicas cifradas. O longa então recorre à tradição do cinema americano dos anos dourados —o filme noir, a “femme fatale”, o gângster, o rebelde sem causa, as autoestradas— para assim recuperar uma narrativa à antiga. Mas esta vai descarrilando de volta para o surrealismo pós-moderno.
Sua obra-prima cinematográfica, “Cidade dos Sonhos”, de 2001, porta citações mais claras, das perigosas curvas da Mulholland Drive a uma personagem ser uma Rita Hayworth “fake”, além de cowboy e gângsteres como os homens do dinheiro em Hollywood.
Entusiasta dos efeitos da luz, Lynch a usa aqui para fazer uma Los Angeles que emana fascínio e fusco letal. A cena final, belíssima e bastante teatral, traz Laura Palmer e outras mulheres, como se o diretor quisesse resgatá-las da farsa de Hollywood.
Não é por menos que Lynch adotaria o “low definition” da câmera caseira para comentar sobre a essência ordinária e monetarista de Hollywood em “Império dos Sonhos”, de 2006. Um pesadelo, senão uma Sodoma e Gomorra.
Sua obra máxima, “Twin Peaks: O Retorno”, de 2017, dialogaria com os Estados Unidos do século 21 e ironizaria a fria e opressiva tecnologia. E não sem deixar de ir aos seus antecedentes —o oitavo episódio da série mergulha literalmente no cogumelo de uma bomba nuclear que portava todo tipo de mal.
Lynch não abandonaria seus interesses. A série traria a vasta biblioteca que é o cinema de Hollywood. Uma releitura de Brando, um jovem casal enamorado, o bem e o mal encarnado num mesmo ator —justamente o Dale Cooper feito por Kyle MacLachlan—, as lanchonetes, a típica cidade montesina, os amores e os pecados.
A obra que David Lynch nos deixou nos abriu para um outro modo de perceber o estado do mundo. Um sentimento mesmo. No mais, a música a entoar essa partida inesperada desse artista gênio pode ser encontrada em um vídeo no YouTube com Angelo Badalamenti, falando sobre a criação do tema para Laura Palma. Uma música que abriga emoção, dor e maravilhamento.