A defesa da funcionária Jacqueline Iris Bacellar de Assis, presa sob suspeita de participação no caso dos órgãos transplantados com HIV no Rio, afirmou em depoimento à polícia que a equipe do laboratório PCS Lab Saleme soube da fiscalização da Vigilância Sanitária dias antes. A secretaria estadual de Saúde nega. Em depoimento obtido com exclusividade por O GLOBO, Jacqueline relatou que funcionários receberam instruções para regularizar a unidade antes da inspeção. O laboratório foi interditado por uma série de irregularidades encontradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
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Segundo Jacqueline, as instruções para a preparação da fiscalização da Vigilância Sanitária foram dadas em um grupo de WhatsApp, após a constatação de erros nos resultados de exames feitos no Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (IECAC).
“Já comentei, podem colocar a unidade de cabeça para baixo. Vista grossa em tudo. Vanessa vai levar o ROI (roteiro de inspeção da Vigilância Sanitária) da fiscalização. Levem tudo o que vocês têm de fiscalização. Fiscalizar todo o fluxo desde o cadastro “, diz a mensagem enviada no grupo intitulado “Fiscalização Iecac”.
De acordo com ela, Walter Vieira, um dos donos do PCS Lab Saleme, deu ordem para que a equipe “economizasse custos” em janeiro deste ano.
“Essa economia deveria abranger todas as áreas da empresa, inclusive em relação ao controle de qualidade dos reagentes usados para realizar as análises do material fornecido pelos clientes e também por doadores de órgãos”, declarou a técnica.
Em nota, a secretaria estadual de Saúde diz que “não houve qualquer contato prévio de fiscais da Vigilância Sanitária com a empresa. A inspeção foi realizada em 4 de outubro sem interferência externa e motivou a interdição do laboratório. Os resultados constam em relatório enviado à sindicância interna que apura o caso, e permanecem sob sigilo até o fim dos trabalhos da comissão.”
Jacqueline também afirmou aos policiais que a calibragem dos aparelhos usados nos exames deveria ser feita diretamente, mas que Vieira ordenou que fosse realizada apenas uma vez por semana, o que “compromete a segurança e a qualidade dos resultados”.
A situação só foi alterada, segundo Jacqueline, quando Vieira soube da inspeção da Vigilância Sanitária.
” A ordem de Walter começou a ser executada nesse sentido em janeiro de 2024, mas, quando ele soube da fiscalização da Vigilância Sanitária, deu uma nova ordem para que o controle fosse feito diariamente, como é o correto. No entanto, os controles deveriam ser fotografados”, relatou em depoimento.
Ela também disse aos policiais que suas funções no laboratório incluíam o pedido de insumos, controle de estoques, preenchimento de planilhas. Segundo Jacqueline, ela também fazia a conferência administrativa de laudos em busca de erros de digitação.
Jacqueline Iris Bacellar de Assis foi presa por constar na assinatura que aparece em um dos laudos que atestaram que os doadores de órgãos não tinham HIV. Em entrevista ao GLOBO, antes de ser presa, ela reconheceu que as rubricas nos documentos são suas, mas negou qualquer envolvimento no caso.
Transplantes de órgãos com HIV:
- Seis pessoas testaram positivo para HIV após receberem órgãos transplantados no Estado do Rio. O laboratório PCS Lab Saleme (que fica em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense) era o responsável pelos exames dos doadores e apresentou resultado negativo para HIV de dois doadores, mas eles eram soropositivo. Entre os transplantes feitos estão os de rins, fígado, coração e córnea.
- A investigação da Secretaria estadual de Saúde do Rio sobre o caso começou em setembro desse ano e culminou com a interdição do laboratório. A secretaria informou que, desde então, tomou uma série de medidas, como suspensão dos contratos e a abertura de uma sindicância interna para identificar e punir os responsáveis.
- Mais de 10 unidades de saúde eram atendidas pelo laboratório investigado.
- Walter Vieira, um dos sócios do laboratório PCS Lab Saleme, é casado com a tia do deputado federal e ex-secretário de Saúde do Rio Doutor Luizinho (PP). Walter é pai de Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, também sócio, que assinou contratos com o governo do estado do Rio. Doutor Luizinho foi secretário de janeiro a setembro de 2023.
- As investigações indicam que os laudos foram falsificados por um grupo criminoso e usados pelas equipes médicas, induzindo-as ao erro. Isso levou os pacientes a serem contaminados.
- Um dos pacientes infectados morreu — as causas do óbito ainda estão sendo apuradas.
- O laboratório PCS Lab Saleme assinou três contratos com o Governo do Rio que, somados, chegam a R$ 17,5 milhões. Dois deles foram realizados de forma emergencial, com dispensa de licitação.
- Segundo levantamento na Transparência do Estado, até outubro deste ano, o laboratório teve empenhos autorizados pelo governo no valor de R$ 21,58 milhões. A capacidade técnica para produzir exames foi questionada por uma concorrente durante o processo de licitação.
- “Não fiz nada para adquirir isso. O erro foi de pessoas irresponsáveis”, relatou uma das pessoas infectadas por HIV após receber um rim de um doador soropositivo.
- A Polícia Civil realizou a operação Verum e cumpriu quatro mandados de prisão e 11 de busca e apreensão em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e na capital. Foram presos na ação Walter Vieira, apontado como sócio do laboratório; e Ivanilson Fernandes dos Santos que, segundo as investigações, é um dos responsáveis técnicos pelos laudos emitidos.
- A assinatura de Jacqueline Iris Bacellar de Assis aparece em um dos laudos que atestaram que os doadores de órgãos não tinham HIV. Ela reconheceu que as rubricas nos documentos são suas, mas negou qualquer envolvimento no caso e disse que sequer é biomédica. Ela se apresentou à polícia no dia seguinte à operação.
- O técnico de laboratório Cleber de Oliveira Santos, responsável do PCS Lab Saleme pela análise dos materiais doados à Central Estadual de Transplantes, foi preso no Aeroporto do Galeão, no Rio, dois dias após a operação. O biólogo chegava de João Pessoa, na Paraíba, para se apresentar à Polícia Civil.
- Os envolvidos são investigados por crime contra as relações de consumo (art. 7º, inciso VII da Lei 8.137/90), associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária, entre outros.
- Ao definir o caso como um “acontecimento sem precedentes na história do transplante brasileiro”, o ex-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e especialista em transplante de fígado, Ben-Hur Ferraz Neto, afirmou que as doações são feitas com “segurança hoje em todo o sistema” e que quem está à espera de um órgão pode ficar tranquilo.
- Neto falou sobre o protocolo de testagem, definido como “muito rigoroso”, após a constatação do óbito, com testes sorológicos de diversas doenças.