Nos meios esclarecidos, nos Estados Unidos e fora deles, as elites educadas se perguntam como foi possível que, depois de tudo, Donald Trump tenha sido eleito novamente. Como foi possível que, depois da invasão do Capitólio, das condenações judiciais e das declarações racistas, o país o tenha escolhido novamente? E não foi uma escolha hesitante. Se não houver surpresa, ele levará todos os estados-pêndulo. Venceu não apenas no Colégio Eleitoral, como caminha para ganhar também no voto popular. Ganhou o voto dos homens latinos. Seu partido conquistou a maioria das cadeiras no Senado e está prestes a levar a maioria também na Câmara. Foi uma vitória maiúscula.
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Formou-se um abismo tão grande entre progressistas e conservadores que um fenômeno dessa magnitude, presente no país há quase dez anos, continua um enigma indecifrável para as elites educadas. Em vez de escutar a população e buscar entendê-la, abundam nos jornais e nos livros explicações condescendentes que sempre dizem, de duas coisas, uma: ou bem o povo é enganado e iludido pelas fake news, pelos algoritmos das plataformas e pela genialidade dos estrategistas conservadores, ou bem foi tomado pelo ressentimento e aderiu de peito aberto à homofobia, à misoginia e ao racismo. Em outras palavras, os cidadãos são manipulados ou estão aderindo ao fascismo. Convido o leitor a deixar de lado essas explicações, ainda que por um momento, e escutar o que dizem os apoiadores de Trump a respeito de duas questões que os críticos consideram inaceitáveis.
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Como podem ter votado nele depois da invasão do Capitólio? Esse assunto foi bastante investigado, e a resposta está em pesquisas relatadas em reportagens nos jornais: quem o apoia acredita que a invasão não foi uma insurreição armada insuflada por ele, mas um protesto em que houve excessos por que Trump não tem responsabilidade direta.
Como podem ter votado num candidato abertamente racista? Pesquisas mostram também que a imensa maioria dos republicanos não o considera racista e acredita que sua política de imigração é motivada por preocupações sinceras, e não por questões raciais. Acreditam também que as declarações mais controversas de Trump são apenas formas de falar ou brincadeiras que não deveriam ser levadas a sério.
Se supusermos, ainda que por um momento, que os apoiadores de Trump acreditam nisso de boa-fé, a partir do que lhes parecem ser boas razões, por que há tamanha disparidade entre o que eles pensam e o que pensam os críticos de Trump? A resposta é dupla. Em primeiro lugar, a perspectiva trumpista é bastante sub-representada no debate público, seja porque a imprensa tem inclinação liberal, seja porque os editores consideram irresponsável dar voz a defensores de uma posição que julgam potencialmente antidemocrática. O resultado é que a opinião sustentada por metade da população está ausente do debate público ilustrado.
A segunda explicação é que, além da clivagem política entre liberais e conservadores, há um abismo social crescente decorrente do populismo de Trump. O trumpismo é construído sobre um antagonismo discursivo que opõe o povo comum a elites tidas como corrompidas. Kamala obteve 56% do voto de quem tem curso superior, e Trump 55% do voto de quem não fez faculdade. Trump obteve 63% do voto protestante e 58% do voto católico, Kamala 71% dos votos de quem não tem religião. Trump obteve 64% do voto rural; Kamala, 59% do voto urbano. São diferenças significativas, mas, também, não tão grandes. Apesar disso, são diferenças suficientemente verdadeiras para sustentar a imagem de que o trumpismo é o movimento da classe trabalhadora, de gente comum de fé cristã, que vive no interior e se opõe à elite educada, progressista e arrogante das grandes cidades.
O populismo tem o estranho poder de moldar o mundo a seu discurso. Quanto mais gente adere ao populismo e quanto mais as elites ilustradas o rejeitam, mais a separação que anuncia vai se tornando verdadeira. A boa notícia é que o abismo social ainda não é tão grande. A má notícia é que vem se ampliando.
Se deixarmos de lado as explicações simplistas de manipulação e fascismo, resta enfrentar a desconexão profunda entre as elites e o povo comum. Se as perspectivas mais simpáticas a Trump estivessem mais presentes no debate público, nos jornais e nas universidades, talvez fôssemos obrigados a admitir que algumas verdades que consideramos evidentes não são tão amplamente compartilhadas. O voto em Trump, antes de ser um mistério a decifrar ou um erro a corrigir, aponta para a necessidade urgente de construir pontes de entendimento que vão além do preconceito e da condescendência.