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Psicodélicos: psicoterapia dispensa misticismo – 06/03/2025 – Virada Psicodélica

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Psicodélicos: psicoterapia dispensa misticismo - 06/03/2025 - Virada Psicodélica

Desde o início da incursão no campo de pesquisa que este blog relata, sempre causou incômodo a associação entre experiências psicodélicas e misticismo. O desconforto só aumenta, agora, ao constatar que o viés tem raízes ainda mais fundas que em estudos explícitos como os de Roland Griffiths, penetrando até um fundamento da psicoterapia assistida por psicodélicos (PAP), a integração.

O problemático vínculo metafísico aparece exposto com clareza no artigo “Integração ou Comoditização? Uma revisão crítica de abordagens de cura psicodélica centrada no indívíduo”, de Emilia Sanabria (Universidade Paris Cité) e Luís Fernando Tófoli (Unicamp). Saiu dia 26 no Journal of Psychedelic Studies.

A bem dizer, o parentesco religioso nem está no centro do artigo, que tem por alvo de crítica modalidades de integração que se cristalizam nesta fase de institucionalização da PAP (em que pese o revés da terapia com MDMA em agosto de 2024 na FDA, agência de fármacos dos EUA). Trata-se da terceira e crucial fase no inovador tratamento proposto.

A primeira etapa do processo consiste na preparação, em que paciente e terapeuta exploram motivações e expectativas com a experiência psicodélica, seja ela com MDMA, psilocibina, DMT, cetamina ou ibogaína. Objetiva também preparar a pessoa para o que nela pode enfrentar, física, psicológica e espiritualmente.

A segunda parte é a sessão de dosagem com uma substância alteradora da consciência, que pode durar de poucos minutos (como DMT inalada) até várias horas (sendo ibogaína um caso extermo). Nos protocolos mais comuns, uma dupla de terapeutas permanece com o paciente para apoio em momentos desafiadores, mas com mínima interação verbal.

Passado o efeito do psicodélico, paciente e terapeuta se reúnem para extrair sentidos e interpretações do que a experiência psicodélica terá suscitado. A meta, aqui, é explorar como eventuais lampejos surgidos sobre condutas, traumas e sentimentos dolorosos ou incapacitantes poderiam ser assimilados na vida cotidiana com vistas a melhorá-la.

Sanabria e Tófoli remontam as origens da noção atual de integração à psicologia transpessoal e aos trabalhos em que Stanislav e Christina Grof voltam a atenção para experiências que ultrapassam o indivíduo, como estados alterados de consciência e vivências místicas. Carl Gustav Jung também considerava que a individuação implicava a necessidade de experiências transcendentais e elementos do inconsciente serem incorporados à personalidade.

Em termos mais prosaicos, experiências liminares como as psicodélicas, na medida em que destoam da normalidade cotidiana, necessitam ser integradas (racionalizadas?) à existência do sujeito no dia a dia, em que vigora –ao menos na normalidade capitalista– uma concepção materialista de realidade. Viagens psicodélicas oceânicas, com passagens por domínios da psiquê e totalidades maiores que o ego, se põem em contradição com a esfera da vida “normal” e demandam por isso alguma reconciliação com a socialidade ordinária.

Os autores do artigo se voltam contra esse papel adaptativo da integração, mais ainda quando ela passa a seguir protocolos padronizados para aplicação a qualquer pessoa. Em nome de abreviar a duração e cortar custos, caminha-se para uma comoditização da terceira fase da PAP que empobrece ou põe a perder o aspecto relacional, ou seja, a configuração peculiar de relacionamentos que o paciente mantém com a família, a comunidade e o próprio terapeuta.

Essa uniformização da integração, propõem, decorre também da influência do pensamento de Joseph Campbell, professor norte-americano de literatura de quem Christina Grof foi aluna. Em 1949, no livro “O Herói de Mil Faces”, ele reduziu mitologias à narrativa em três atos da “jornada do herói”: partida, iniciação e retorno.

Logo se vê o paralelismo com a sequência da PAP: preparação (abandono da zona de conforto), dosagem (mergulho no desconhecido) e integração (volta à normalidade). A integração concebida na alegada universalidade do paradigma biomédico concentra no indivíduo todo o peso da cura, alienando a etiologia social e histórica dos transtornos mentais.

Campbell faz tabula rasa da miríade de peculiaridades que diferenciam as substâncias dos mitos em diferentes culturas. Os protocolos de PAP, em paralelo, apagam do horizonte de cura psicodélica séculos de práticas comunitárias díspares com plantas de poder, como no caso de povos indígenas e religiões da ayahuasca.

Toda a agência curativa aparece atribuída ao self. O que é uma espiritualidade imanente para povos originários, em que a cosmologia concebe intencionalidade em todos os seres, na perspectiva materialista do Ocidente se apresenta como experiência mística exclusiva do indivíduo, que enfrenta solitariamente o imperativo de conciliar vivências extraordinárias com a vida ordinária.

Não surpreende, desse ponto de vista, que tantos pesquisadores psicodélicos adotem a intensidade da experiência mística como indicador da eficiência terapêutica de substâncias alteradoras da consciência. A contrapartida do materialismo vem com o transcendentalismo: aquelas experiências liminares constituem uma viagem para outros domínios de realidade (última, una, divina, cósmica, paralela etc.), onde completam a iniciação e, com sorte, ao voltar se reintegrarão saudavelmente no dia a dia.

O enquadramento da experiência psicodélica como experiência mística é evidentemente datado e etnocêntrico. Outras culturas e cosmologias não concebem essa separação metafísica entre mundos, portanto não vivem a necessidade de integrar o que quer que seja. Usam-se as substâncias para pensar (e sonhar) com maior clareza, visitar ancestrais ou trocar de pele e se comunicar com animais e plantas, na maior habitualidade.

“Para assegurar que o potencial transformador de terapias psicodélicas não se perca no processo de comoditização, o campo da medicina psicodélica deveria priorizar pesquisas e intervenções que partam da interconexão entre indivíduos e seus contextos sociais”, concluem Sanabria e Tófoli, “reconheçam a importância de abordagens baseadas na comunidade e enfrentem as questões sistêmicas que subjazem às disparidades de saúde mental.”

Para curar-se não são obrigatórios doses heroicas, paroxismos místicos ou mudanças abruptas de crenças, como pareciam pressupor alguns estudos de Roland Griffiths. Mas o panorama começa a mudar.

Já relatei neste blog a frustração com ser excluído de um estudo online da Universidade Johns Hopkins sobre mudança de crença sob efeito de psicodélicos ao responder que não houve nada disso. A análise de Sandeep Nayak e Griffiths sobre as 2.374 entrevistas saiu em 2022 e indicou que a proporção de crentes na amostra passou de 29%, antes, para 59% depois da experiência psicodélica.

O peso conferido à metafísica na Johns Hopkins produziu a uma polêmica interna no grupo que levou à defecção de um integrante destacado, Matthew Johnson. Após a morte de Griffiths, em outubro de 2023, saiu outro artigo de Nayak em co-autoria com o fundador da equipe, com o sintomático título “Experiências Psicodélicas Aumentam Percepção de Mente mas não Alteram Condição de Ateu ou Crente”, baseado em respostas de 657 participantes.

“Reproduzindo achados anteriores, observamos aumentos na percepção de mentes em meio a uma variedade de alvos vivos e não vivos (p.ex. plantas, rochas)”, resumem os autores. “No entanto, encontramos pouca ou nenhuma mudança em crenças metafísicas (p.ex. dualismo) ou na condição de ateu ou crente.” É perfeitamente possível viver experiências espirituais (não egoicas) profundas sem passar a acreditar em deuses ou duendes.

Karl Marx disse que religião é o ópio do povo. Seria o caso de acrescentar que o misticismo é o ópio do povo psicodélico: ao hiper-individualizar o potencial de cura com tais substâncias, condenando quem sofre sozinho a uma jornada heroica pela integração redentora, a integração serviria para conformar transtornados às condições alienantes de uma sociedade enferma.



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Kits da 2ª Corrida da Ufac serão entregues no Centro de Convivência — Universidade Federal do Acre

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Kits da 2ª Corrida da Ufac serão entregues no Centro de Convivência — Universidade Federal do Acre

Os kits da 2ª Corrida da Ufac serão entregues aos atletas inscritos nesta quinta-feira, 23, das 9h às 17h, no Centro de Convivência (estacionamento B), campus-sede, em Rio Branco. O kit é obrigatório para participação na corrida e inclui, entre outros itens, camiseta oficial e número de peito. A 2ª Corrida da Ufac é uma iniciativa que visa incentivar a prática esportiva e a qualidade de vida nas comunidades acadêmica e externa.

 



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Ufac homenageia professores com confraternização e show de talentos — Universidade Federal do Acre

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Ufac homenageia professores com confraternização e show de talentos — Universidade Federal do Acre

A reitora da Ufac, Guida Aquino, e a pró-reitora de Graduação, Ednaceli Damasceno, realizaram nessa quarta-feira, 15, no anfiteatro Garibaldi Brasil, uma atividade em alusão ao Dia dos Professores. O evento teve como objetivo homenagear os docentes da instituição, promovendo um momento de confraternização. A programação contou com o show de talentos “Quem Ensina Também Encanta”, que reuniu professores de diferentes centros acadêmicos em apresentações musicais e artísticas.

“Preparamos algo especial para este Dia dos Professores, parabenizo a todos, sou muito grata por todo o apoio e pela parceria de cada um”, disse Guida.

Ednaceli Damasceno parabenizou os professores dos campi da Ufac e suas unidades. “Este é um momento de reconhecimento e gratidão pelo trabalho e dedicação de cada um.”

O presidente da Fundação de Cultura Elias Mansour, Minoru Kinpara, reforçou o orgulho de pertencer à carreira docente. “Sinto muito orgulho de dizer que sou professor e que já passei por esta casa. Feliz Dia dos Professores.”

(Camila Barbosa, estagiária Ascom/Ufac)

 



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PZ e Semeia realizam evento sobre Dia do Educador Ambiental — Universidade Federal do Acre

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PZ e Semeia realizam evento sobre Dia do Educador Ambiental — Universidade Federal do Acre

O Parque Zoobotânico (PZ) da Ufac e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semeia) realizaram o evento Diálogos de Saberes Ambientais: Compartilhando Experiências, nessa quarta-feira, 15, no PZ, em alusão ao Dia do Educador Ambiental e para valorizar o papel desses profissionais na construção de uma sociedade mais consciente e comprometida com a sustentabilidade. A programação contou com participação de instituições convidadas.

Pela manhã houve abertura oficial e apresentação cultural do grupo musical Sementes Sonoras. Ocorreram exposições das ações desenvolvidas pelos organizadores, Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sínteses da Biodiversidade Amazônica (INCT SinBiAm) e SOS Amazônia, encerrando com uma discussão sobre ações conjuntas a serem realizadas em 2026.

À tarde, a programação contou com momentos de integração e bem-estar, incluindo sessão de alongamento, apresentação musical e atividade na trilha com contemplação da natureza. Como resultado das discussões, foi formada uma comissão organizadora para a realização do 2º Encontro de Educadores Ambientais do Estado do Acre, previsto para 2026.

Compuseram o dispositivo de honra na abertura o coordenador do PZ, Harley Araújo da Silva; a secretária municipal de Meio Ambiente de Rio Branco, Flaviane Agustini; a educadora ambiental Dilcélia Silva Araújo, representando a Sema; a pesquisadora Luane Fontenele, representando o INCT SinBiAm; o coordenador de Biodiversidade e Monitoramento Ambiental, Luiz Borges, representando a SOS Amazônia; e o analista ambiental Sebastião Santos da Silva, representando o Ibama.

 



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