POLÍTICA
Arqueologia do absurdo | VEJA

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6 meses atrásem

Arthur Pirino
Agora é a The Economist sugerindo que existe por aqui um “poder sem freios”. Algo que pode levar a “impulsos iliberais que violam a liberdade, em vez de protegê-la”. A revista se refere ao STF e aos casos de censura bem conhecidos por aqui. Cita as centenas de pessoas banidas da internet, “frequentemente sem nenhuma explicação”. Fala do uso de palavras com sentido vago para punir pessoas. E por aí vai. The Economist dá apenas um sinal. Diria que o recado mais duro recebido pelo Brasil veio da Audiência Nacional da Espanha. O tribunal negou a extradição de Oswaldo Eustáquio, um tipo tratado por aqui como “blogueiro bolsonarista” e condenado por sua retórica política. O tribunal definiu suas condenações como tendo “evidente motivação política”. Disse que Eustáquio é um jornalista, que sofreu três detenções, e há relatos de maus-tratos. De modo que mandar o sujeito para o Brasil traria risco, “em razão de suas opiniões políticas e de sua vinculação a determinada ideologia”. O caso é interessante. A Espanha é um país europeu, mas fez exatamente como os Estados Unidos, com sua Primeira Emenda, ainda no governo Biden, quando também negou um pedido de extradição desse tipo. Espanha e Estados Unidos tratam distintamente a liberdade de expressão, mas concordam em um ponto básico: não reconhecem o delito de opinião. São Estados constitucionais, suas autoridades seguem o que diz a lei, e nenhum tribunal está autorizado a agir “sem freios”. Exatamente como deveria acontecer no Brasil.
Perguntado sobre as matérias de The Economist, o presidente do STF sugeriu que a revista havia embarcado na narrativa dos “extremistas”. Teria sido também o caso do tribunal espanhol? O ministro assegurou que aquelas pessoas envolvidas no 8 de Janeiro são julgadas com o “devido processo legal” e que “as decisões de remoção de conteúdo foram devidamente motivadas e envolviam crime”. Será mesmo? Ou esta pergunta carece um pouco de sentido? Pois se temos de fato uma instituição “sem freios”, por que exatamente ela não poderia dizer ou desdizer, a cada momento, o que significa “crime” ou “devido processo”? No fim do dia, por que deveria haver alguma restrição na definição do que é falso ou verdadeiro, em algum debate sobre direitos? Observe-se: aquelas pessoas do 8 de Janeiro não têm foro por prerrogativa de função. Deveriam ser julgadas na primeira instância, como manda a lei. Foi exatamente o que disse o ministro Fux no julgamento da Débora dos Santos. Mas se aceitamos a ideia de que o direito é matéria de interpretação e que essa é a lógica pragmática do poder, que diferença faz o que as leis dizem sobre o foro? Basta uma frase dizendo que o “tribunal decidiu”, que está tudo o.k. com o “devido processo”, e ponto-final.
O ministro diz que foram removidos conteúdos que infringiam as leis. Há apenas uma sutileza aí. O que se fez no Brasil não foi apenas remoção de “conteúdos”. Isto é autorizado no marco civil da internet. O que se fez foi algo essencialmente distinto: a remoção de pessoas. Isto é, censura prévia. Algo sem respaldo em nossas leis. Novamente, uma pitada de pós-verdade pode resolver isso. Por que cargas d’água uma autoridade não pode assinar um ofício banindo um tipo qualquer, para que ele não fale no futuro, e dizer que aquilo não é censura prévia, mas a defesa da democracia, e isso justificar qualquer coisa? É o mesmo com a definição do que seja um crime. Fazer uma pergunta educada, no X, sobre o resultado de algumas urnas seria um crime? Fazer um “joinha”, ou não dizer nada, em um grupo privado de WhatsApp seria um crime? E colocar um post na internet, divulgando um protesto em Nova York, como fez um deputado do Paraná? Em que lei isto seria um crime? Tudo isso soa um pouco absurdo. Aliás, por vezes, me vejo no Brasil dos últimos anos fazendo uma espécie de arqueologia do absurdo, ao listar casos estranhíssimos de inovações em nosso mundo jurídico, feitas a partir da lógica pragmática do poder. Isto não deveria ser assim em uma democracia constitucional.
“O experimento pode prosperar gerando marcos institucionais próprios”
O interessante é ler a revista inglesa falar em “impulsos iliberais”. No fundo é isso. Estamos ficando com a cara de uma democracia iliberal. O termo se popularizou com um artigo de Fareed Zakaria, nos anos 90, e diria que ganhou enorme relevância nos dias que correm. Ele diz respeito ao fato simples de que podemos ter regimes com o desenho básico de uma democracia — eleições, partidos, instituições —, mas, quando aproximamos um pouco a lente, percebemos as sombras: relativização de garantias individuais, desrespeito à liberdade de expressão, reiterado abuso do poder. Democracias se definem, em uma medida relevante, pela pergunta sobre “quem governa”; democracias liberais envolvem a pergunta sobre como o poder é exercido. E, em especial, sobre limites para o exercício do poder. O experimento brasileiro trouxe algumas lições: uma delas diz que o iliberalismo pode vir da direita ou da esquerda. Outra é que ele não obedece a um único curso institucional: pode vir do Executivo ou do Judiciário. E pode prosperar gerando marcos institucionais próprios, como um inquérito que nunca termina e permite qualquer coisa, ou simplesmente pela via da criatividade jurídica, com o contínuo ajuste das regras ao gosto de quem detém o poder.
O que me fascina é o elemento plástico, no plano da linguagem. Algo que o bem-humorado Slavoj Zizek chamou de “verdade autorreferencial”: aquilo que não pode ser avaliado “por sua precisão factual, mas pelo modo que afeta a posição subjetiva da enunciação”. Acho isso sensacional. A verdade performativa, com um sabor psicanalítico, visto corresponder ao desejo de um certo universo subjetivo. Algo na linha: posso censurar, dizendo que não estou censurando, ou dizer que a moça do batom estava de fato dando um golpe, pintando estátua, desde que tenha poder para dizer isso. É tudo muito interessante. Mas vai na direção inversa da que deveria trilhar um Estado constitucional. Nossos direitos se traduzem em palavras, gravadas em lei. Elas estão lá para limitar o poder de quem ocupa posições de Estado. Se por alguma razão oferecemos a essas pessoas o poder de jogar com o sentido das palavras, fazemos exatamente o mesmo com nossos direitos. E por aí já estamos longe de qualquer coisa próxima a uma democracia liberal.
É por isso que um recado vindo de fora de nosso transe político, seja de uma revista ou de um alto tribunal espanhol, pode ser bastante educativo. Quem sabe, nem tudo que contrarie nossa forma de pensar seja coisa dos extremistas. E talvez alguma humildade possa nos ajudar a pensar e corrigir o rumo que o país vai trilhando. E a retomar um caminho institucional do qual nunca deveríamos ter nos afastado.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2025, edição nº 2942
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POLÍTICA
A articulação para mudar quem define o teto de jur…

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6 meses atrásem
5 de maio de 2025
Nicholas Shores
O Ministério da Fazenda e os principais bancos do país trabalham em uma articulação para transferir a definição do teto de juros das linhas de consignado para o Conselho Monetário Nacional (CMN).
A ideia é que o poder de decisão sobre o custo desse tipo de crédito fique com um órgão vocacionado para a análise da conjuntura econômica.
Compõem o CMN os titulares dos ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento e da presidência do Banco Central – que, atualmente, são Fernando Haddad, Simone Tebet e Gabriel Galípolo.
A oportunidade enxergada pelos defensores da mudança é a MP 1.292 de 2025, do chamado consignado CLT. O Congresso deve instalar a comissão mista que vai analisar a proposta na próxima quarta-feira.
Uma possibilidade seria aprovar uma emenda ao texto para transferir a função ao CMN.
Hoje, o poder de definir o teto de juros das diferentes linhas de empréstimo consignado está espalhado por alguns ministérios.
Cabe ao Conselho Nacional da Previdência Social (CNPS), presidido pelo ministro da Previdência Social, Wolney Queiroz, fixar o juro máximo cobrado no consignado para pensionistas e aposentados do INSS.
A ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck, é quem decide o teto para os empréstimos consignados contraídos por servidores públicos federais.
Na modalidade do consignado para beneficiários do BPC-Loas, a decisão cabe ao ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Wellington Dias.
Já no consignado de adiantamento do saque-aniversário do FGTS, é o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que tem a palavra final sobre o juro máximo.
Atualmente, o teto de juros no consignado para aposentados do INSS é de 1,85% ao mês. No consignado de servidores públicos federais, o limite está fixado em 1,80% ao mês.
Segundo os defensores da transferência da decisão para o CMN, o teto “achatado” de juros faz com que, a partir de uma modelagem de risco de crédito, os bancos priorizem conceder empréstimos nessas linhas para quem ganha mais e tem menos idade – restringindo o acesso a crédito para uma parcela considerável do público-alvo desses consignados.
Ainda de acordo com essa lógica, com os contratos de juros futuros de dois anos beirando os 15% e a regra do Banco Central que proíbe que qualquer empréstimo consignado tenha rentabilidade negativa, a tendência é que o universo de tomadores elegíveis para os quais os bancos estejam dispostos a emprestar fique cada vez menor.
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