A eleição se encerrou com um diagnóstico: a esquerda se afastou do povo e não consegue mais conversar com ele. Esse lugar estaria ocupado ou por uma direita fisiologicamente moderada, ou por uma extrema direita em processo violento de renovação, ou por um “extremo-centro” que sempre preencheu cargos políticos no Brasil.
Repetido desde 2018, esse argumento produz efeitos sobre as esquerdas —a campanha de Guilherme Boulos (PSOL) foi o último exemplo.
Há três eleições vão surgindo cartilhas para reconstituir uma ligação que parecia sanguínea: falar com os jovens, “dialogar com evangélicos”, “voltar para a base”, entre várias outras.
Mas e se o observarmos pelo seu avesso?
É o outro lado do diagnóstico, ainda não tão bem elaborado, porque não foi só a esquerda que se distanciou do povo, mas também o povo foi deixando de compartilhar a leitura que a esquerda faz do mundo. Isso faz notar que o abismo é maior —e que uma “reinvenção” da esquerda poderia ser, aí sim, sua morte definitiva, dependendo de como ela acontecesse.
Significa também que esse estado de coisas vai além das próprias forças da esquerda e que sociedades são mais complexas do que as condições efetivas de transformá-las.
Em duas décadas, o Brasil reformulou dilemas, reorganizou hierarquias, refez muitos dos seus horizontes e redesenhou a participação na política, quase tudo a partir de suas classes populares. Isso em paralelo a grandes transformações, como a explosão das redes sociais ou o trabalho em plataformas, por exemplo —que se adaptaram à nossa informalidade, mas deram outra cara a ela: de “empreendedorismo”.
Pouco mais de 20 anos atrás, 36,3 milhões de brasileiros eram trabalhadores informais. Hoje, são 38,8 milhões. O que mudou não foi a realidade, mas como ela é encarada. A informalidade era vista como um problema estrutural do país, mas o empreendedor contemporâneo se lança sozinho no mundo, não só para subsistência, mas por outro sonho: o de enriquecer por seu próprio esforço, como mostram estudos (como o de Rosana Pinheiro-Machado).
É sintomático ainda que uma das promessas de Lula, em 2002, tenha sido um programa para inserir jovens em um primeiro emprego. Hoje, terminado o ensino médio, eles já topam com a precariedade do trabalho —e muitos não se animam com a universidade porque calculam que ela não mudaria nada.
O desafio das esquerdas também está ao avesso: em tempos de extrema direita ou de “extremo-centro”, é preciso se manter firme às pautas, às ideias, às narrativas e aos horizontes que sempre as estruturaram. Há coisas que são inegociáveis, como o combate à precarização do trabalho e à falência da educação pública e a defesa do papel do Estado sobre as desigualdades. Isso não significa que as esquerdas devam ser rígidas diante das dinâmicas do presente, mas que precisam oferecer soluções “de esquerda” para elas.
É um desafio e tanto, porque muitas dessas dinâmicas são formas encontradas pelos mais pobres para viver e, ao mesmo tempo, são impasses existenciais à esquerda. É quando o abismo fica maior —e o diagnóstico encontra seu limite.
Perder eleições é parte do jogo. Perder princípios não.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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