POLÍTICA
Os limites e a civilização
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10 meses atrásem
Arthur Pirino
“A ideia de que vivemos num período semelhante à decadência romana é amplamente reconhecida no mundo intelectual”, leio em um texto do meu amigo Luiz Felipe Pondé, por estes dias. Pondé é um provocador. Ele traz ao debate um tipo neoconservador chamado Rod Dreher, cuja tese pode ser resumida da seguinte maneira: andamos em meio a uma crise ética, política e espiritual. Nosso império romano declinando seriam os Estados Unidos, e estaríamos vivendo o “fim da ordem global construída no pós-Segunda Guerra”. A saída sugerida por Dreher: deveríamos redescobrir São Bento, o monge que, no século VI, pregou a vida monástica e criou o que viriam a ser as ordens beneditinas.
Tese excelente. Diante do caos, o recuo. O livro-sensação de 2024, A Geração Ansiosa, de Jonathan Haidt, sob certo aspecto propõe o mesmo movimento. Seu caos é outro. É o bombardeio de informação, o elemento perverso das redes e tudo o mais. E o que fazer? Proteger, em especial nossos mais jovens, do inferno digital. Haidt não é um conservador, diz coisas com base na ciência, e seu diagnóstico é oposto ao de Dreher. Algo como: nosso problema não é a decadência, mas o sucesso. Mas também diante dele é preciso alguma sabedoria. O argumento vai em linha com a ideia do “paradoxo da abundância”, que escutei da doutora Anna Lembke, meses atrás. A autora de Nação Dopamina bate na tecla: nosso problema é o excesso. Criamos uma civilização que nos oferece doses infinitas de tentações a baixo custo, por todos os lados. E o risco é você simplesmente perder o controle.
As teses de que vivemos uma época de decadência (seja isto o que for) me parecem falsas. O pessimismo, como nota Pondé, é uma mania dos intelectuais. Ainda por estas semanas lia um artigo de John Gray assegurando que a eleição de Trump era “a derrota final do liberalismo”. Achei graça, contando quantas vezes o liberalismo já foi “definitivamente” derrotado. Se você lê os últimos livros de Yuval Harari, tratando dos incríveis riscos da IA, o primeiro impulso é construir um abrigo subterrâneo, no quintal, para se proteger do ataque de alguma inteligência robótica maligna, além de se precaver contra o iminente fim dos empregos. Em parte, isso se dá porque a especulação é livre. É sempre possível juntar pedaços da realidade e achar que tudo vai mal. Ou reunir pedaços distintos e concluir o oposto. Na década passada, Vargas Llosa escreveu um livro melancólico, A Civilização do Espetáculo, lamentando que a tecnologia e a cultura de massa disseminaram a superficialidade mundo afora. Karl Popper enxergou o oposto. Em seu discurso no Festival de Salzburgo, em 1979, fez troça das teorias sobre a “decadência estética”, da “moda pessimista da intelligentsia”, celebrando que a tecnologia havia “tornado Mozart e Beethoven acessíveis às pessoas comuns”.
Vale o mesmo para os tais sinais de decadência que nossos intelectuais enxergam nos Estados Unidos. O.k., há uma guerra comercial com a China. E não seria por isso que surgiu o Doge, o novíssimo Departamento de Eficiência Governamental, órgão encarregado de uma reforma radical que Musk e Vivek prometem, dando um choque de eficiência na máquina estatal americana? Nossos intelectuais ficam irritadíssimos com isso. Fazer o quê? Os Estados Unidos acabaram de produzir Sam Altman e sua IA; acabaram de fazer um foguete dar marcha a ré; migraram a corrida espacial para o setor privado, e logo teremos humanoides a baixo custo fazendo o trabalho que não desejamos fazer. “Ah! Mas tem o Trump!”. Pois é.
Há dois grandes grupos de pessimistas. Um deles é o pessimismo civilizatório. Oswald Spengler, por exemplo. Haveria ciclos civilizacionais, e estaríamos, aqui no Ocidente, na curva descendente. Detalhe: Spengler escreveu isso há pouco mais de 100 anos. Cada um pode julgar. O segundo tipo é o pessimismo existencial. Emil Cioran seria seu patrono. Ele e seu niilismo radical. Sobre o “não nascer como o melhor plano”, e tudo que sabemos. De minha parte, digo que nenhum dos dois tipos para de pé. O pessimismo civilizatório, porque é mentiroso; o pessimismo existencial, porque é inútil. E, em regra, de mentirinha. O próprio Cioran demonstrou isso, com seu apuro estético, sua recusa em gastar a vida trabalhando, a crença na escrita como forma de redenção. A ideia de que até se pode dar um tiro na cabeça, mas o universo prosseguirá perfeitamente indiferente, de modo que o melhor é evitar tanto drama.
“O viés de negatividade não foi inventado pela internet”
O que se pode dizer é que andamos em meio a um mal-estar generalizado. A revolução tecnológica criou um mundo que convida ao descentramento. Se você vai ler um bom artigo na internet, termina capturado pelas besteiras do dia; se você leva o celular no fim de semana, termina em uma discussão inútil em um grupo do WhatsApp. O problema parece prosaico, mas não é. A perda da atenção, a procrastinação e a permanente comparação com a vida dos outros são males universais de nossa época. Outro traço é o viés de negatividade. Claire Robertson, psicóloga da NYU, e um time de pesquisadores analisaram uma enorme quantidade de notícias on-line, com uma base de 5,7 milhões de cliques em 370 milhões de visualizações. Resultado: a cada palavra negativa a mais, como “raiva” e “medo”, os cliques aumentavam em 2,3%. Já palavras positivas, como “alegria” ou “progresso”, geravam o efeito inverso. A negatividade aumenta o engajamento. O viés de negatividade não foi inventado pela internet. É uma propensão humana. A geringonça digital apenas acelerou o processo, dada a uma simples equação de mercado. Não por acaso, um estranho pânico em torno de temas de “justiça social”, em regra associados a gênero e raça, explodiu em algum momento na virada para a segunda década do século. Vamos convir que não foi o mundo que subitamente começou a piorar por volta de 2010. Foi nossa percepção, afetada por uma mecânica difusa e impessoal. E é prudente ficar atento a isso.
A melhor leitura de nossa época nos fala do excesso e das dores da abundância, mais do que da decadência. O mundo segue violento e injusto, mas a mortalidade infantil caiu 60% e a extrema pobreza foi de 35% a menos de 10%, desde os anos 90. Intelectuais não gostam desses números, pois eles não têm charme. Mas eles sugerem que, em vez de entrar em uma nova idade média, nossa maior probabilidade é cumprirmos a profecia de Keynes em “Possibilidades econômicas para nossos netos”. Sua tese, de 1930, diz que, com o avanço da renda, em questão de um século terminaríamos livres do “problema econômico”. E com isso nos voltaríamos às coisas que realmente importam, como humanos. Keynes pode ter errado no prazo, em especial se colocarmos o planeta todo na equação. Mas não diria que errou na tendência.
No fim, o mais provável é que terminaremos todos em cidades limpas e bem-organizadas. Vamos lembrar que Freud associou a civilização exatamente a essas coisas. A beleza, a ordem e a limpeza. Vai levar um bom tempo, e até lá vamos continuar resmungando. E, quando chegarmos lá, seguiremos assim, pois nenhum avanço civilizatório resolverá nosso problema existencial. Vai aí, quem sabe, a função dos intelectuais, inclusive de tipos como Cioran. Nos lembrar que podemos ter de tudo por aqui, mas o absurdo da condição humana permanece. Felizmente, diga-se de passagem.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2025, edição nº 2925
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POLÍTICA
A articulação para mudar quem define o teto de jur…
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6 meses atrásem
5 de maio de 2025Nicholas Shores
O Ministério da Fazenda e os principais bancos do país trabalham em uma articulação para transferir a definição do teto de juros das linhas de consignado para o Conselho Monetário Nacional (CMN).
A ideia é que o poder de decisão sobre o custo desse tipo de crédito fique com um órgão vocacionado para a análise da conjuntura econômica.
Compõem o CMN os titulares dos ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento e da presidência do Banco Central – que, atualmente, são Fernando Haddad, Simone Tebet e Gabriel Galípolo.
A oportunidade enxergada pelos defensores da mudança é a MP 1.292 de 2025, do chamado consignado CLT. O Congresso deve instalar a comissão mista que vai analisar a proposta na próxima quarta-feira.
Uma possibilidade seria aprovar uma emenda ao texto para transferir a função ao CMN.
Hoje, o poder de definir o teto de juros das diferentes linhas de empréstimo consignado está espalhado por alguns ministérios.
Cabe ao Conselho Nacional da Previdência Social (CNPS), presidido pelo ministro da Previdência Social, Wolney Queiroz, fixar o juro máximo cobrado no consignado para pensionistas e aposentados do INSS.
A ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck, é quem decide o teto para os empréstimos consignados contraídos por servidores públicos federais.
Na modalidade do consignado para beneficiários do BPC-Loas, a decisão cabe ao ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Wellington Dias.
Já no consignado de adiantamento do saque-aniversário do FGTS, é o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que tem a palavra final sobre o juro máximo.
Atualmente, o teto de juros no consignado para aposentados do INSS é de 1,85% ao mês. No consignado de servidores públicos federais, o limite está fixado em 1,80% ao mês.
Segundo os defensores da transferência da decisão para o CMN, o teto “achatado” de juros faz com que, a partir de uma modelagem de risco de crédito, os bancos priorizem conceder empréstimos nessas linhas para quem ganha mais e tem menos idade – restringindo o acesso a crédito para uma parcela considerável do público-alvo desses consignados.
Ainda de acordo com essa lógica, com os contratos de juros futuros de dois anos beirando os 15% e a regra do Banco Central que proíbe que qualquer empréstimo consignado tenha rentabilidade negativa, a tendência é que o universo de tomadores elegíveis para os quais os bancos estejam dispostos a emprestar fique cada vez menor.
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