O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT-SP), afirma que tem tido mais tempo de conversar com o presidente Lula (PT) já que o Congresso está funcionando em ritmo lento por causa das eleições municipais.
Um dos temas principais das conversas, afirma ele, é a dinâmica dos gastos do governo e o impacto deles na dívida pública —que só cresce. Resolver esse problema, diz Haddad, é “premente” e está “na ordem do dia”.
O ministro afirma que é necessário “endereçar essa questão” para “as pessoas enxergarem que a soma das partes vai caber no todo” e que o arcabouço fiscal definido pelo governo vai de fato funcionar.
Ele diz que Lula já tomou diversas providências e que a questão, portanto, está equacionada no curto prazo. Mas é preciso mais, enfrentando gastos estruturais que comprometem as contas no futuro.
Ele afirma que Lula “conhece o contexto e está atento”, e que é possível resolver essa questão “premente” sem transformar o Brasil na Argentina, em que a taxa de pobreza disparou para 52,9% depois do ajuste fiscal promovido pelo presidente Javier Milei.
DÍVIDA PÚBLICA
Há quase dois anos o senhor parece exclusivamente correr atrás de receitas. Elas cresceram, mas os gastos estruturais também. Em consequência, a dívida pública aumentou, bem como as dúvidas sobre sua sustentabilidade. Há limites técnicos e políticos tanto para novo aumento de receitas quanto para a reestruturação dos gastos. Que cartas o senhor ainda tem na manga para enfrentar o problema?
Vamos lembrar alguns indicadores importantes. A deterioração da base fiscal do Estado começou lá atrás, em 2015.
Perdurou e piorou até 2023. Recebi um orçamento do governo anterior com previsão de receitas na casa de 17% do PIB, o pior da série histórica. A despesa estava na casa de 19,5% do PIB. A maquiagem de 2022 passou a impressão para a sociedade de que tínhamos um equilíbrio fiscal. Mas ele foi construído com base no calote de precatórios e em privatizações açodadas que geraram receitas que não se repetiriam nos anos seguintes.
O que fizemos? Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a despesa não pode crescer acima de 70% da receita. E dentro do limite de 2,5%. A diferença vai recompor as contas públicas deterioradas.
Até aqui, deu certo. O déficit veio para alguma coisa em torno de 1% do PIB, excetuada a despesa extraordinária com queimadas, que é pequena em relação ao orçamento, e com o Rio Grande do Sul [por causa das enchentes]. Despesa da qual me orgulho: a economia gaúcha está em franca recuperação.
O papel do ministro da Fazenda não é só apresentar uma planilha para o presidente. Isso é o mais fácil. Você chama qualquer economista da Liga das Senhoras Católicas que ele te apresenta uma planilha. Corta aqui, corta ali. Mas vai convencer a opinião pública. Vai aprovar no Congresso
Então a meta deste ano está sendo mantida. E se não fossem dois episódios da política —como você coloca bem em sua pergunta— , que foi [o Congresso] estender a desoneração da folha [de pagamentos de salários] aos municípios de até 156 mil habitantes e o Perse [programa de retomada do setor de eventos que previa isenções], nós estaríamos hoje em equilíbrio fiscal.
Mas há apreensão pois a dívida pública cresce.
A Faria Lima [avenida de SP onde se concentram agentes do mercado financeiro] está, com razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar isso com seriedade.
A soma das partes, das rubricas orçamentárias, pode fazer com que o arcabouço fiscal aprovado por este governo não se sustente.
O que a Faria Lima está apontando —na minha opinião, com algum exagero em relação ao preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos gastos] para a frente é preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União tem que fazer para financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar providências. A Fazenda está com isso na mesa, 100%.
Com a mesma preocupação?
A mesma preocupação. Desde fevereiro estamos tomando algumas medidas —que não são suficientes para endereçar esse problema para o futuro próximo. E eu tenho conversado com o presidente Lula sobre esse tema específico.
Da dívida pública?
Da questão da dinâmica dos gastos e do impacto disso sobre a dívida. O impacto é o efeito monetário da política fiscal. Quando as pessoas perdem a certeza de que o governo está endereçando esses temas, elas começam a cobrar um prêmio de risco em juros.
E alto: hoje os juros da dívida pública pagos pelo governo estão em torno de 7%, o dobro do PIB.
É esse o problema. Você tem que endereçar corretamente. Tem que dar credibilidade para a dinâmica futura [de gastos e da dívida feita para financiá-los] para trazer esses juros ao patamar adequado. Caso contrário, o teu problema não vai ser de déficit primário [diferença entre arrecadação e gastos do governo], mas de déficit nominal, que inclui o pagamento de juros. Eu sempre disse, e repito: a política monetária e a fiscal têm que estar harmonizadas. Ou você produz um ciclo vicioso do qual é difícil de sair.
Onde está a virtude? Em continuar fazendo o que é o mantra da Fazenda: as receitas têm que voltar ao patamar adequado para financiar [os gastos], combatendo jatubis que favorecem grupos específicos, por exemplo.
Em que patamar do PIB o senhor acha que a receita deve ser estabelecida?
Na casa de 19% do PIB. E a despesa, obviamente, tem que ser menor do que 19% do PIB, para gerarmos superávit. Se conseguirmos fazer isso, a taxa de juros vai voltar a cair, como vinha caindo até o final de 2023.
E o que o senhor está falando com o Lula?
Falo o seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes —a soma do salário mínimo, saúde, educação, BPC— é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada.
Eu falo para o presidente exatamente o que estou falando para você.
Que precisa ajustar a despesa.
Nós precisamos enfrentar essa questão para as pessoas enxergarem que as somas das partes vai caber no todo.
O presidente foi o campeão do superávit primário em seus oito anos de governo [anteriores, de 2002 a 2010]. Foi a pessoa que mais reduziu a dívida pública, e tem orgulho disso. Agora, é óbvio que o que ele herdou do governo Bolsonaro é completamente diferente do que o que ele herdou do [governo] Fernando Henrique Cardoso
E que despesas ele então concorda em ajustar?
Ele tomou providências em relação ao orçamento do ano que vem. O que eu estou dizendo agora para ele é: ‘Olha, o senhor é um presidente de quatro, oito anos, não importa. Mas nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu mandato. As pessoas não estão olhando só para 2026. O mercado financeiro olha para 2027, para 2028, para 2029, para 2030. Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai estourar mais à frente e] que ela está antecipando’. É natural.
Estou mostrando ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário que nós temos que equacionar estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa decisões e prejudica o presente.
Então, não há como contornar o problema. Você pode fazer isso por um, dois, seis meses. Mas não vai conseguir equacionar.
HERANÇA
E o presidente se convenceu?
Nós estamos conversando. Estamos tendo mais tempo para isso, até em função do recesso do Legislativo por causa das eleições.
O presidente foi o campeão do superávit primário em seus oito anos de governo [anteriores, de 2002 a 2010]. Foi a pessoa que mais reduziu a dívida pública, e tem orgulho disso.
Agora, é óbvio que o que ele herdou do governo Bolsonaro é completamente diferente do que o que ele herdou do [governo] Fernando Henrique Cardoso.
Aquela herança maldita do governo FHC, portanto, não era assim tão maldita?
Eu nunca usei essa expressão. Tem que cobrar de quem usou.
O Lula usou.
Eu realmente não sei. Mas nada é comparável ao que aconteceu de 2015 para cá.
CORTES
O presidente Lula não parece disposto a mexer na vinculação dos gastos de educação e saúde ao aumento da receita, na indexação do salário mínimo, no BPC, no seguro desemprego. Ou seja, em um conjunto de gastos que só cresce e que é apontado como causador do problema estrutural da dívida.
O governo, e eu não me excluo, demorou a perceber o grau de disfuncionalidade causado pela alteração de alguns programas.
Desde 2021 houve a PEC do Calote [que adiou o pagamento de precatórios], a retirada de filtros do BPC e do Bolsa Família [para a concessão dos benefícios], a ampliação do Fundeb [fundo da educação básica] de R$ 22 bilhões em para quase R$ 70 bilhões em 2026 sem fonte de financiamento.
Ou seja, muitas das despesas que se pretende cortar foram contratadas antes de o Lula tomar posse. Quando vê isso, o presidente fala assim: ‘Pô, mas eu vou cortar dos pobres?’. Percebe a situação?
E então?
[Eu digo a Lula] ‘Ninguém está dizendo que é fácil. O senhor colocou o pobre no orçamento, ninguém está pedindo para tirar. Mas há questões estruturais que precisam ser resolvidas. Porque são distorções muitas vezes criadas com finalidades eleitorais, particularmente pelo governo anterior. Elas estão no nosso colo. Não tem pra quem dar a batata quente. Então temos que resolver”.
Mas o que será feito, afinal?
Eu estou aqui na condição de ministro da Fazenda que tem a obrigação de informar ao público as preocupações da área econômica. Mas não posso antecipar decisões que vão ser tomadas pelo chefe do executivo.
E como fazer isso sem mexer com os mais pobres?
Dá para fazer. Há uma forma inteligente de endereçar o problema. Do mesmo jeito que a gente fez o país crescer 3%, e ninguém acreditava [que isso seria possível].
Mas cresce justamente pela expansão do gasto público…
[interrompendo] Não, não é verdade. O impulso fiscal desse ano é menor do que o do ano passado. Como é que então vai explicar o crescimento pelo gasto?
As pessoas estão desconsiderando que nós estamos fazendo a maior reforma tributária da história desse país. A maior reforma de crédito da história desse país. Que nós estamos reformulando o setor de seguros. Que o crédito vai expandir mais de 10%, acima das receitas.
Por que setor após setor tem encontros com o presidente da República no Palácio do Planalto pra anunciar investimentos da ordem de R$ 90 bilhões, R$ 120 bilhões, se a incerteza é tão grande? Será que é?
ARGENTINA
O senhor mesmo manifesta preocupação.
Uma coisa é manifestar preocupação. A outra é dizer que nada está sendo feito. Eu gostaria que a velocidade fosse maior? O ministro da Fazenda, se pudesse, fazia um ajuste no primeiro mês do governo para ficar sossegado nos outros três anos e onze meses. Mas as coisas não funcionam assim. Elas têm que ser construídas politicamente.
O papel do ministro da Fazenda não é só apresentar uma planilha para o presidente. Isso é o mais fácil. Você chama qualquer economista da Liga das Senhoras Católicas que ele te apresenta uma planilha. Corta aqui, corta ali. Mas vai convencer a opinião pública. Vai aprovar no Congresso.
O outro ponto é o seguinte: o que mais protege os mais pobres é crescimento com baixa inflação. Sem crescimento, não tem como fazer ajuste nenhum em um país como o Brasil. É inviável politicamente.
Temos então que combinar tudo isso. Às vezes o caminho é um pouquinho mais longo do que um economista ortodoxo gostaria. Mas ele é mais saudável do ponto de vista político, econômico e social.
Olha o que está acontecendo na Argentina: 60% das pessoas [vivem hoje] abaixo da linha da pobreza. Não sei quantas passam fome. Uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso.
Que gastos são “imexíveis” para o presidente Lula?
Não existe tabu para a área técnica. Mas não posso antecipar a avaliação que ele está fazendo. Ele conhece o contexto e está atento. Está com isso na cabeça. Lula tem um plano de governo, tem um plano para o Brasil. Ele é comprometido com esse país.
Todos dão como certo que não existirá nenhum tipo de ajuste no Brasil em 2026 por ser um ano eleitoral. Daí a expectativa de que ele seja feito agora.
Pois é.
Daí a nossa pergunta.
E eu estou respondendo. O que eu não posso é antecipar uma decisão que não me cabe.
Temos agora que resolver antes a questão da reestruturação da despesa. Isso vem na frente de qualquer outra coisa. Lula conhece o contexto e está atento
ISENÇÃO
O presidente se comprometeu com algumas propostas que aumentam gastos, como a isenção de imposto de renda para a faixa de até R$ 5.000. Ela será dada inclusive para quem ganha mais do que isso, até este valor? Ou será dada apenas a quem recebe exatamente isso?
Não, porque aí quem ganha R$ 5.001,00 paga quanto? Entende? Não dá para funcionar assim. São vários cenários. Estamos levando ao presidente todos os exercícios que ele pede.
Aprovada essa isenção, será necessário buscar uma receita para cobrir os custos. De onde ela virá? Taxando lucros e dividendos, o que pode atingir empresas do Simples e PJs?
A reforma da renda será feita com neutralidade, como aconteceu com a reforma do consumo.
Se dá para um, tem que tirar do outro?
É isso. De onde sai, para onde vai. Com que escadinha, com que prazo.
De novo: não posso antecipar decisões. O papel da Fazenda é levar cenários e prós e contras para o presidente. “Esse cenário tem esse custo político”. Vamos fazer a reforma da renda. Mas o modelo ainda não está definido.
A primeira etapa da reforma da renda será mesmo enviada ao Congresso depois das eleições municipais?
Eu penso que temos agora que resolver antes a questão da reestruturação da despesa. Isso vem na frente de qualquer outra coisa.
Já conseguimos recompor uma boa parte da base fiscal com o que tinha sido perdido [em isenções]. A desoneração da folha [de pagamento de salário das empresas] está com prazo para acabar. O Perse está com prazo para acabar. A isenção de fundos fechados e offshore acabou. São coisas contratadas para sempre. É receita ordinária, e não extraordinária. Nós não estamos vendendo estatal a preço de banana para fazer caixa.
E a próxima etapa, que estou discutindo com Lula, é a da reestruturação [dos gastos]. É a questão mais premente, que está na ordem do dia. E nós temos que dar resposta a isso.
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