NOSSAS REDES

POLÍTICA

O sentido de uma República

PUBLICADO

em

O sentido de uma República

Arthur Pirino

Leio que a União move uma ação contra uma produtora de vídeos. A razão é um documentário sobre o julgamento de Maria da Penha, vítima de duas tentativas de homicídio, nos anos 1980. O caso foi julgado em 1991, com a condenação de seu ex-marido. Em 2006, foi votada a lei no Congresso que leva o seu nome. A história é bastante conhecida, e não vai aqui juízo de mérito sobre os argumentos em jogo. A ação diz que o documentário traz “argumentos distorcidos” e “informações incompletas”, que seus autores não consideraram “apropriadamente” as alegações do processo judicial e que o material não atende a “critérios de veracidade”. Raras vezes li, mesmo no estranho Brasil dos últimos anos, um documento oficial que afirmasse de modo tão claro a ideia do Estado disciplinador da verdade. Não deveria me impressionar muito com essas coisas, me dizem. Há muito teria se perdido, no Brasil, a ideia simples de que a sociedade é diversa, que documentários, assim como filmes e livros, expressam visões divergentes. E que não cabe ao Estado usar de seu poder de violência, sua máquina jurídica, para empurrar goela abaixo dos cidadãos essa ou aquela opinião, essa ou aquela religião, ideologia ou visão de mundo.

Para entender melhor essas coisas, imaginem: estamos em 2027, um candidato do outro “lado” político ganhou as eleições, e esse mesmo órgão de Estado, agora sob outra direção, resolve processar autores de documentários e opiniões que contradigam a “sua” verdade sobre alguma lei, personagem histórico ou política pública. Você pode imaginar qualquer coisa. Alguém “ofende” o presidente? Chama de “nazista”? Faz um documentário “incompleto” sobre o novo teto de gastos, que está “destruindo” políticas sociais? Vai aqui um velho hábito dos filósofos. Inverte-se o lugar dos atores no jogo para ver se a regra pode ser universal. Ou ao menos “impessoal”, como diz a Constituição. Sejamos claros: é um completo nonsense admitir que a opinião e a crítica dos cidadãos devam corresponder a algum critério de verdade estipulado pelas pessoas que ocupam posições de poder. E que essas pessoas possam mover a máquina jurídica do Estado contra quem pensa de maneira divergente. Vale o mesmo para a ideia de que uma decisão judicial ou política pública não possam ser criticadas. Ou que pessoas que dão nome a legislações não podem ter algum item de sua biografia rediscutido. Haveria então, quem sabe, um panteão dos indiscutíveis. E sem perceber voltaríamos, em pleno século XXI, à ideia da infalibilidade do Estado. Isso além de mandar pelos ares um direito elementar dos cidadãos. Boa parte do que temos de melhor na modernidade foi feita exatamente do questionamento a decisões judiciais. A campanha de Voltaire para a revisão do caso Jean Calas; a carta histórica de Zola criticando o processo contra o capitão Dreyfus. Isso e inúmeros casos, no Brasil ainda muito recente. Não acho que o Brasil queira se transformar em um país do Estado-verdade. Do Estado-­dogma. Acho apenas que estamos deslizando nessa direção, ao sabor da guerra política.

O fato é que, no transe brasileiro, vamos normalizando toda sorte de agressão a direitos. Ainda nesta semana, lia sobre a multa de 20 000 reais dada a Filipe Martins por aparecer, calado, ao lado de seu advogado, em uma postagem na internet. Recuei um pouco no tempo, até 2019, e foi curioso ver as mesmas pessoas que hoje aplaudem uma coisa dessas bradando que era um “inalienável direito constitucional” de Lula, então preso, dar entrevistas. E mais: que era um direito dos cidadãos terem acesso àquelas opiniões. Perfeito. De minha parte, sempre concordei com isso. O curioso é ver o mesmo tribunal, e as mesmas pessoas, anos depois, mandando multar um sujeito por aparecer, mudo, em um vídeo com seu advogado. O.k., os justificadores de qualquer coisa justificarão mais essa, pois esse é seu ofício. Dirão que aquela imagem poderia ser uma “ameaça à democracia” ou quem sabe um tipo inovador de “discurso de ódio”. Quando o direito se converte em qualquer coisa, nenhuma lógica ou justificação, no fundo, é necessária para o uso do poder.

“No transe brasileiro vamos normalizando a agressão a direitos”

Não há jeito nenhum de uma República funcionar dessa maneira. Dias atrás, a Espanha recusou a extradição de mais um jornalista punido no Brasil por suas opiniões. Chamou atenção o que disse a procuradora espanhola Teresa Sandoval: os “atos do jornalista”, diz ela, que no Brasil seriam “crime de abolição violenta do estado democrático de direito”, na Espanha “não são crime” e estão “amparados pela liberdade de expressão”. A procuradora Sandoval não é nenhuma líder da “direita global” e não há conspiração alguma em curso. Ela diz o mesmo que já disseram autoridades americanas, muito antes da posse de Trump, quando recusaram uma extradição nos mesmos termos. E no fundo é o que disse o último relatório sobre a democracia global, da revista The Economist, onde o Brasil declina seis posições, entre outras razões, por abusar das “expressões vagas” para punir e censurar.

Continua após a publicidade

O que o Brasil precisa é de um choque de bom senso. Fazer voltar a valer garantias individuais escritas com clareza em nossa Constituição, que por muito tempo nos fizeram sentir orgulho de nossa democracia. Voltar a temas elementares do “devido processo”. O juiz natural, o foro adequado, a individualização das penas, a impessoalidade do Estado, a atenção ao que está tipificado em lei, e não a “uma opinião particular do juiz”, na expressão que não é minha, mas foi escrita há quase três séculos, em um livro magnífico, O Espírito das Leis, por Montesquieu. E que por alguma razão voltei a reler, recentemente.

Tempos atrás, escutei de alguém que estes “temas das garantias” não eram tão importantes assim, pois tería­mos outras urgências no país, como a economia e a educação. Gentilmente, como costumo fazer, discordei. De fato, uma boa democracia, feita à base da lei, capaz de respeitar direitos individuais, não resolve nossos problemas. Mas é condição para que eles sejam resolvidos. É mera ilusão imaginar que vamos evoluir, como uma grande democracia que decidimos nos tornar, nos anos 1980, insistindo nas “definições vagas” no lugar que deveria pertencer às prerrogativas individuais. É ilusão imaginar que isso só acontecerá no mundo político, e não na vida econômica. E que acontecerá com os “outros”, que por hora são nossos inimigos políticos. O problema republicano importa porque é ele que permite que os cidadãos expressem as suas ideias, com liberdade. Permite que o parlamento funcione e nossos representantes possam dizer o que julgam que devam dizer, sem medo. Isso do mesmíssimo jeito que permite que os agentes econômicos confiem nas leis, na previsibilidade do jogo e invistam, em especial visando ao longo prazo. E, por fim, por uma ideia algo misteriosa, quem sabe um secreto orgulho, de viver em um país sem dono, sem “delito de opinião”, sem censura prévia, onde os agentes de Estado não têm preferências e os direitos valem para todos. Pois esse, no fundo, é o sentido de uma República.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Continua após a publicidade

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 11 de abril de 2025, edição nº 2939



Leia Mais: Veja

Advertisement
Comentários

Warning: Undefined variable $user_ID in /home/u824415267/domains/acre.com.br/public_html/wp-content/themes/zox-news/comments.php on line 48

You must be logged in to post a comment Login

Comente aqui

POLÍTICA

Frase do dia: Ciro Gomes

PUBLICADO

em

Frase do dia: Ciro Gomes

Matheus Leitão

Frase do dia: Ciro Gomes | VEJA

Relâmpago: Digital Completo a partir R$ 5,99

“Estou muito envergonhado! Isto é uma indignidade inexplicável!” (Ciro Gomes, ex-ministro da Fazenda, usando as redes sociais para reclamar da troca de Carlos Lupi por Wolney Queiroz, seu desafeto no PDT, no comando do Ministério da Previdência Social) 


VEJA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês

DIA DAS MÃES

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 9)

A partir de 35,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a R$ 5,99/mês.


PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.

Comscore

//www.instagram.com/embed.js



Leia Mais: Veja

Continue lendo

POLÍTICA

Charge do JCaesar: 05 de maio

PUBLICADO

em

Charge do JCaesar: 05 de maio

Felipe Barbosa

Charge do JCaesar: 05 de maio | VEJA

Relâmpago: Digital Completo a partir R$ 5,99


VEJA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês

DIA DAS MÃES

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 9)

A partir de 35,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a R$ 5,99/mês.


PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.

Comscore

//www.instagram.com/embed.js



Leia Mais: Veja

Continue lendo

POLÍTICA

A articulação para mudar quem define o teto de jur…

PUBLICADO

em

A articulação para mudar quem define o teto de jur...

Nicholas Shores

O Ministério da Fazenda e os principais bancos do país trabalham em uma articulação para transferir a definição do teto de juros das linhas de consignado para o Conselho Monetário Nacional (CMN). 

A ideia é que o poder de decisão sobre o custo desse tipo de crédito fique com um órgão vocacionado para a análise da conjuntura econômica. 

Compõem o CMN os titulares dos ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento e da presidência do Banco Central – que, atualmente, são Fernando Haddad, Simone Tebet e Gabriel Galípolo.

A oportunidade enxergada pelos defensores da mudança é a MP 1.292 de 2025, do chamado consignado CLT. O Congresso deve instalar a comissão mista que vai analisar a proposta na próxima quarta-feira. 

Uma possibilidade seria aprovar uma emenda ao texto para transferir a função ao CMN.

Continua após a publicidade

Hoje, o poder de definir o teto de juros das diferentes linhas de empréstimo consignado está espalhado por alguns ministérios. 

Cabe ao Conselho Nacional da Previdência Social (CNPS), presidido pelo ministro da Previdência Social, Wolney Queiroz, fixar o juro máximo cobrado no consignado para pensionistas e aposentados do INSS.

A ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck, é quem decide o teto para os empréstimos consignados contraídos por servidores públicos federais.

Continua após a publicidade

Na modalidade do consignado para beneficiários do BPC-Loas, a decisão cabe ao ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Wellington Dias.

Já no consignado de adiantamento do saque-aniversário do FGTS, é o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que tem a palavra final sobre o juro máximo.

Atualmente, o teto de juros no consignado para aposentados do INSS é de 1,85% ao mês. No consignado de servidores públicos federais, o limite está fixado em 1,80% ao mês.

Continua após a publicidade

Segundo os defensores da transferência da decisão para o CMN, o teto “achatado” de juros faz com que, a partir de uma modelagem de risco de crédito, os bancos priorizem conceder empréstimos nessas linhas para quem ganha mais e tem menos idade – restringindo o acesso a crédito para uma parcela considerável do público-alvo desses consignados.

Ainda de acordo com essa lógica, com os contratos de juros futuros de dois anos beirando os 15% e a regra do Banco Central que proíbe que qualquer empréstimo consignado tenha rentabilidade negativa, a tendência é que o universo de tomadores elegíveis para os quais os bancos estejam dispostos a emprestar fique cada vez menor.



Leia Mais: Veja

Continue lendo

MAIS LIDAS