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O país da grande fogueira

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O país da grande fogueira

Arthur Pirino

“Destruição de todos os livros”, diz a ordem do ministro Flávio Dino. Desconfio que ficará na história. O tema é conhecido. Os livros continham preconceitos e opiniões detestáveis, e sobre isso não há muita dúvida. A pergunta relevante é sobre como desejamos lidar com isso. Se de fato desejamos dar aos agentes do Estado o poder de julgar estas coisas: o erro e o acerto de uma opinião. E a partir daí mandar calar, suprimir, silenciar, destruir. Não penso que seja uma questão trivial. Todos já escutaram a frase famosa de Louis Brandeis, segundo a qual o melhor remédio para as más ideias é mais debate, mais discurso, mais contraditório, e não o “silêncio forçado”. Ele disse isso em um julgamento da Suprema Corte americana, em 1927. Havia uma intuição, ali, de que dar ao Estado o poder de suprimir uma má opinião pode ser ótimo, no curto prazo. Mas ao longo do tempo tende a ser um desastre. Um desastre como conceito do que deve ser uma república. De minha parte, não me surpreendo em nada com a decisão do ministro. Não temos um Brandeis por aqui. E lamento dizer que não basta que esteja escrito, na Constituição, que “é livre a manifestação do pensamento”, como um direito fundamental. Se essas palavras não se converterem em um valor na sociedade, e se não houver instituições capazes de fazer isso valer, sejamos sinceros, elas são letra morta. Minha única curiosidade é saber como esses livros serão destruídos. Não acho que isso deveria ser feito às escondidas, mas em uma grande fogueira, quem sabe na Praça dos Três Poderes. Há uma certa tradição nessa maneira de destruir livros, e poderíamos incorporar isso a nossos rituais republicanos. De tempos em tempos, uma imensa pira com todos os livros errados. Feito rituais de purificação de nossa democracia.

Para quem achar que vai alguma ironia aqui, digo que não. Não muda nada se os livros forem moídos ou picotados. É exatamente isso que estamos fazendo. E tudo é perfeitamente coerente com o que nos tornamos como país, nos últimos anos. O que estamos fazendo é consagrar algo que George Orwell chamou de “crimideia”. Não o crime de injúria ou calúnia a alguém, em particular, tipificado em nossas leis. Mas a noção de uma “opinião criminosa”, julgada por alguém como capaz de causar “ofensa coletiva”. Algo como dizer: “Os apoiadores do candidato X são nazistas”. Quer dizer: eles são racistas, querem meter seus inimigos em uma câmara de gás. É um pouco inútil entrar no mérito de cada uma dessas ofensas. Há infinitas delas, todos os dias, em nosso debate público. E é irrelevante perguntar sobre o que deve entrar na conta de “discurso odioso” ou de “agressão à dignidade humana”. Na medida em que aceitamos delegar a um agente de Estado tomar essa decisão em nosso nome, o problema já está decidido, de antemão.

O que vamos instituindo, na vida brasileira, é a república dos direitos flutuantes. Certos tipos de ofensas, a certos grupos, em certas publicações, autorizam a censura. Quando o juiz Oliver Holmes, da Suprema Corte americana, fixou o seu critério de que apenas discursos que gerassem “risco claro e imediato” deveriam ser proibidos, ele quis exatamente afastar a seletividade das interpretações. Encurtar a distância entre o fato e a regra, de modo que a subjetividade de quem ocupa o poder não terminasse por fabricar o direito. Na prática: evitar o abuso. Se um dia criarmos um humanoide magnânimo, com uma IA perfeitamente constitucional, quem sabe possamos delegar esse julgamento com tranquilidade. Por ora ele não existe. Felizmente. E é isso que dá sentido à prudência republicana de deixar nas mãos dos cidadãos, e não dos agentes de Estado, a prerrogativa de separar o joio do trigo. De julgar as boas e más opiniões. E recusar a ideia do Estado-panóptico, dia e noite vigiando frases, livros, comentários no rádio, filmes, documentários, peças de teatro, programas de humor e conversas no WhatsApp.

“O vigor de uma regra só é testado diante das piores ideias”

Foi esta a tese sustentada pela desembargadora Marga Tessler no processo. Ela foi clara em definir como “totalmente inadequado patrulhar a produção jurídica, histórica ou artística, pinçando frases aqui e ali, e a partir daí identificar a publicação como um todo de disseminação de ódio ou ameaça à dignidade humana”. Cito aqui a desembargadora Tessler para mostrar que há uma divergência no mundo jurídico brasileiro que reflete algo maior: uma divergência sobre o tipo de república que desejamos ser. De minha parte, acho curioso que este seja, no fundo, um antigo debate. Há exatos 380 anos, em 1644, o poeta John Milton escreveu uma carta com um nome difícil, “Aeropagítica”, ao Parlamento inglês. Uma carta pedindo exatamente o fim da censura aos livros. Milton lembra do mito de Osíris e da verdade partida em mil pedaços, que só serão novamente rejuntados no Dia do Juízo. Tudo para lembrar de nossa condenação como humanos: lidar com a incerteza. O ônus da dúvida e do juízo. Bendita condenação, que traz junto de si liberdade. Milton desconfia do poder. Pergunta se por acaso seríamos nós, pessoas comuns, tão “levianas, sem formação e debilitadas”, que não seríamos capazes de processar o que “não passasse pelo filtro de um censor”. E por fim reconhece o óbvio: que somos falíveis. Que temos nossos vieses. E que isso se aplica inclusive a quem detém o poder. Aqueles que “podem se enganar na escolha de um censor tão facilmente quanto o censor pode se enganar sobre um livro”. Seu ponto era dizer que, caso esse direito fosse concedido ao Estado, seus agentes iriam errar. Agir com seletividade. Se alguém duvidar, basta observar a incrível variedade de motivos usados no Brasil, ainda agora, para justificar a censura. Fiz uma lista apenas lendo algumas decisões recentes de nossos tribunais e percebi que a coisa iria longe: “discurso de ódio”, “intolerância”, defesa da “dignidade humana”, “tratamento desrespeitoso”, “preconceito”, “ameaças à democracia”, “agressão”. Conceitos abertos, generosos, em que cabe a rigor qualquer coisa que uma autoridade desejar. Na própria decisão sobre os livros, estava lá a ideia de que a liberdade de expressão não serviria para a “prática de maldades”, e sim para “promover o bem-estar e a dignidade do ser humano”, ou ainda (a melhor de todas), para as ideias que “engrandeçam a democracia, e não o contrário”.

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Não é preciso ir longe para saber a que situação o uso de (in)definições como estas nos levaria. Quem sabe punir uma revista, por ser “conservadora”, ou um punhado de cidadãos, por protestarem à frente de um evento, em Nova York. Ou quem sabe um professor, por indagações no Twitter sobre o resultado de algumas urnas. Tudo isso aconteceu no Brasil. E aconteceu precisamente porque admitimos aquela regra. A regra do Estado guardião das palavras. Curador, editor, juiz da opinião. E, logo, censor. É exatamente isso que deveríamos revisar. Entender de uma vez por todas que o vigor de uma regra, como a liberdade de expressão, só é testado diante das piores, e não das melhores ideias. E é por isso que sugiro aquela imensa fogueira em Brasília. Ela possivelmente não irá acontecer. Mas é real. E quem sabe apenas a sua lembrança, e de tudo que ela carrega, possa nos lembrar sobre uma linha que jamais deveríamos cruzar em nossa vida republicana.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918





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Também alcança itens como café, açúcar, manteiga, pães, embutidos, bolachas, massas e medicamentos de baixo custo.

Tarcísio fez o anúncio em visita à sede da Associação Paulista de Supermercados (Apas), onde foi recebido pelo presidente da entidade, Erlon Ortega, e por diretores e representantes do setor. 

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